ARGUMENTO

Richard Peña:

O mundo do cinema oferece um banquete, mas a grande maioria dos americanos só quer comer no McDonald’s

Richard Peña:

O mundo do cinema oferece um banquete, mas a grande maioria dos americanos só quer comer no McDonald’s


Entrevista publicada no ARGUMENTO 173
Setembro 2022




É conferencista habitual em cinematecas e festivais de cinema de todo o mundo, e professor de Teoria do Cinema e Cinema Internacional na Universidade de Columbia. Richard Peña, director do NYFF/Festival de Cinema de Nova Iorque entre 1988 e 2012, orientou uma aula/sessão no contexto do curso VANGUARDAS E ESTÉTICAS NO CINEMA, organizado pelo Cine Clube de Viseu.
    O reputado e influente historiador focou a renovação do cinema americano nos anos 1960-70, e de algum modo baralhou a hierarquia dos realizadores mais influentes da época ao destacar o trabalho de duas cineastas pouco conhecidas, Barbara Loden e Carolee Schneemann. Esteve à conversa com o público presente na sessão no IPDJ, em Viseu (05/03/2022), começando pelo percurso como cinéfilo e programador. E revela as razões de falar português fluentemente. «Durante a faculdade fiz estudos latino americanos, e por ter uma amiga que passou um ano no Brasil ouvi discos de Chico Buarque e Caetano Veloso. Também falava espanhol, a minha mãe era espanhola e o meu pai porto-riquenho, compreendia as letras, e decidi que seria bom estudar português. E fiquei obcecado com o Brasil, já lá fui mais de 40 vezes. Nos anos 80 conheci um pouco de Portugal, sempre através do cinema, pela obra de Manoel de Oliveira e toda a geração desses anos, João Botelho, João César Monteiro».

Porquê e como se dá o percurso no cinema alternativo?
Para podermos compreender o contexto do cinema alternativo é necessário conhecer as instituições que permitiram que este surgisse e que o apoiam. A estrutura do cinema comercial nasceu aproximadamente no ano de 1918, nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo. Nos anos 20, surgiu sobretudo em França, Alemanha e alguns outros lugares, imagino que em Portugal também, várias entidades que queriam expandir um pouco as definições do que era o cinema. Assim sendo, criaram formas de apresentar os filmes ou projecções de cinema alternativo, documentários, cinema de vanguarda, animação e eventualmente de países que não tiveram acesso ao cinema comercial.
    O primeiro Festival de Cinema que surgiu, no sentido contemporâneo, foi o Festival de Veneza (1932) e de seguida apareceu uma organização no sul da França, com o nome de Festival de Cannes, que tinha por objectivo criar o seu próprio evento em 1939. A primeira edição estava programada para 2 de Setembro de 1939, mas infelizmente Hitler invadiu a Polónia no dia 1 de Setembro, provocando o cancelamento do festival até 1946. Só após esta data voltaram a realizar-se vários festivais por todo o mundo.
    Por sua vez, o Festival de Nova Iorque iniciou-se em 1963, logo após a criação do Lincoln Center. A fundação do Lincoln Center tinha como principal função realizar uma renovação urbana de uma parte de Nova Iorque, que neste caso era um bairro pobre, onde havia bastante miséria. Se virem o West Side Story de 1961, foi filmado exactamente onde Lincoln Center está agora. Quando acabavam uma cena, muitas vezes derrubavam os edifícios que se veem no filme. Em 1969 foi fundado o Film Society do Lincoln Center nas ruínas do West Side Story.
    O Festival de Nova Iorque começa em 1963, e devo dizer que acho que era uma coisa bastante corajosa por parte da gerência do Lincoln Center. Nesse momento, a inclusão do cinema dentro de uma meca da arte não era assim tão óbvio. Há uma história de que quando o Presidente daquela época do Lincoln Center, um compositor chamado William Schuman anunciou ao conselho da administração que ele queria fundar um festival de cinema, um dos membros do conselho, David Rockefeller, daquela tão famosa família, disse “um festival de cinema no Lincoln Center, qual é a próxima, um clube de basebol?”. Havia, até então, uma visão de que o cinema não merecia lugar, mas para mim era muito importante, como jovem criado em Nova Iorque, ver o cinema ao lado do que de melhor se fazia na Europa, na música clássica, no ballet e no teatro.



E enquanto programador de estruturas e festivais de primeira importância na cena cultural nova iorquina, como se foi definindo a sua sensibilidade e linha programática?
O Festival de Nova Iorque é um festival específico. Richard Roud e Amos Vogel, os dois primeiros fundadores e directores, tinham a visão de apresentar um festival bastante pequeno, apresentando 25 filmes em cada ano, escolhidos no mundo inteiro, sem pensar muito se o filme se abria a um grande público, nada disso, só os melhores eram seleccionados para esse ano. Essa era a política usada durante 25 anos. Amos Vogel saiu depois de 5 anos, Richard Roud continuou até 1987 e eu entrei em 1988. A política continua a mesma até hoje, o festival sempre resistiu à tendência norte-americana de se expandir a tamanhos incríveis. Por exemplo, o festival de Montreal num ano apresentou 400 filmes, é outro modelo. O Festival de Nova Iorque optou sempre por uma selecção bastante pequena, o que para mim dá mais sentido a um festival que teve curadoria de pessoas que fizeram uma selecção, não é uma enciclopédia, é uma visão bastante específica do cinema num ângulo particular.
    Existem grandes shoppings e existem boutiques, e temos necessidade dos dois. Mas porque só apresentávamos um pequeno número de filmes, depois de algum tempo fomos acusados de sermos muito elitistas. Alguns realizadores voltaram muitas vezes ao festival, como o grande Manoel de Oliveira, mas nós ficámos sempre com essa política. E estou muito orgulhoso por depois da minha saída as pessoas que agora têm o festival a seu cargo manterem os mesmos princípios.
    Para mim trata-se de apresentação de filmes e também de educação. A coisa mais bonita do processo de ser director do festival era apresentar algo como o cinema iraniano e vermos nos primeiros anos as salas com 40% a 50% de lotação, mas cinco anos depois os filmes iranianos eram as primeiras sessões a ser vendidas. Vimos um público que descobriu um novo cinema. Aceitou o cinema iraniano que continuou a ser um cinema respeitado, não talvez com tanta presença como antes, mas pelo menos faz parte da cultura cinematográfica e isso é sempre a nossa luta, expandir sempre a definição do que é o cinema. Às vezes faço a piada, falando do meu país, o mundo do cinema está a oferecer um banquete, mas a grande maioria dos americanos só quer comer no McDonald’s. Não sei porquê, mas recusam a riqueza que o cinema lhes oferece, não só do cinema estrangeiro, mas o próprio cinema americano.


"Wanda" (Barbara Loden, 1970)

"Fuses" (Carolee Schneemann, 1967)
O cinema veio a tornar-se, no fundo, um espaço privilegiado de descoberta e de encontro com o outro.
Pode ser de certo modo um reflexo da minha experiência pessoal. Aos 12 anos fui pela primeira vez ao Festival de Nova Iorque para ver um filme de Erich von Stroheim. Para mim, sobretudo naquela época, ver filmes num festival e vários cinemas de repertório era uma aventura. Muitas vezes vi coisas que não entendi nada, mas isso era uma coisa boa para mim, era fantástico, não entendia naquele momento mas um dia iria compreender. Isso soa como aventura. Não quero fazer outra comparação negativa ao McDonald’s, mas em qualquer balcão do mundo desta empresa a comida vai ser a mesma, e em vez disso eu prefiro experimentar algo diferente.



Entre tantos realizadores conceituados deste período do cinema americano, qual é a razão para escolher estas duas realizadoras menos conhecidas, Barbara Loden e Carolee Schneemann?
Podemos, obviamente, falar sobre os grandes conhecidos como Coppola, Scorsese, Lucas, mas aí já existem vários livros, críticas. Para mim, neste período, interessa a descoberta das pessoas que por quaisquer razões foram excluídas dessas considerações, mesmo que, na minha opinião, tenham filmes muito radicais e inovadores. Interessa-me cada vez que há este tipo de buraco negro dentro da história do cinema. Porque é que um filme como o Wanda, para mim um filme tão fantástico, tão poderoso, foi rejeitado, quais as razões, e começo a pensar e chego a algumas teorias. Quando viajo para falar do cinema americano, falo de coisas esquecidas, e se posso falar sobre Barbara Loden ou Carolee Schneemann isso parece-me mais útil. Há muitos que podem falar de Alfred Hitchcock e as minhas palavras sobre ele não são necessárias.



Em 2024, é com muito gosto que recebemos o programador e investigador norte-americano Richard Peña para um mini curso de cinema, integrando, em Maio, o plano de iniciativas especiais do 25.º aniversário do Teatro Viriato.

✔ Sexta 31 Maio das 18h30 às 21h30.
✔ Sábado 01 Junho das 10h às 13h e 14h30 às 18h30.
Participação 30eur, com desconto para os associados CCV (20eur) e amigos Teatro Viriato.
As pessoas interessadas devem preencher o formulário de inscrição (link aqui)
Seminário acreditado pela APECV


ARQUIVO
Entrevista à artista visual Bruna Ferreira (edição 181)
Entrevista de Anabela Moutinho ao director de fotografia Ed Lachman
Dossier Um Cânone Cinematográfico Hoje?: resultados da convocatória
Entrevista à artista visual Ângela Romanito (edição 177)
Entrevista à música e artista visual Joana de Sá (edição 176)
Na edição 175 falámos com o ilustrador Mantraste!
Entrevista a Neil Gaiman por Edgar Pêra (para a série Cinecomix!!!)
Entrevista a Richard Peña, programador e conferencista
Viseu, 1985, o primeiro ciclo dedicado a Pier Paolo Pasolini
Dossier Cinema, Pós-Verdade & Bolhas: resultados da convocatória
Entrevista a Margarita Ledo, realizadora galega de Nación
Na edição 169 falámos com
Ana Eliseu!

Por Um Punhado de Ókulos: Edgar Pêra e John Carpenter
Nada Roucos Anos 20: Entrevistas com realizadores
Dossier Futuros do Cinema: resultados da convocatória
Das Mãos e Outros Olhares: Anabela Moutinho sobre Donzela Guerreira
A outra dimensão da conversa com Tommi Musturi (edição 167)...

Na edição 166 falámos com Dartagnan Zavalla!

 



ARGUMENTO

Dossier
“Futuros do Cinema”


DEZEMBRO 2020
Nos 65 anos do Cine Clube 1955-2020




A resposta à convocatória Futuros do Cinema: Crítica, Públicos, Salas de Cinema, que lançámos no início deste ano, continua, para lá das páginas do Argumento, aqui. Para aprofundar a reflexão que temos vindo a fazer acerca da privatização, da individualização  do cinema e do abandono do seu templo (como lhe chama a Laura Gonçalves na entrevista que nos concedeu – espreitem os Nada Roucos Anos 20 na edição #167 em papel), apresentamos um ensaio de João Valentim, “O Cinema depois do Streaming”, e uma crítica de Pedro Barriga a Anima, curta de Paul Thomas Anderson pouquíssimo vista em sala e que o autor considera um exemplo do melhor cinema de 2019.

E se é certo que para haver quem veja é preciso haver quem faça, André Almeida Bastos escreveu sobre um exercício simbiótico levado a cabo pelos Beastie Boys e os seus fãs, quebrando algumas fronteiras e assim levantando algumas questões cada vez mais prementes.

CONTEÚDOS ONLINE


 



ARGUMENTO

NADA ROUCOS
ANOS 20


JANEIRO 2021
Nos 65 anos do Cine Clube 1955-2020



Ouvimos 7 realizadores portugueses com menos de 35 anos, e convencemo-nos da força e da sagacidade que há em arrogar a incerteza e fazer dela matéria de reflexão e de trabalho. Tomás Paula Marques, Laura Gonçalves, Luís Costa, Joana de Sousa, Alexandra Ramires, Dinis Leal Machado e Jorge Jácome oferecem-nos um olhar plural sobre o horizonte à vista e aquele ainda encoberto, numa fotografia viva e arguta do cinema português que está a começar hoje.




ENTREVISTAS

Tomás Paula Marques:
«Não devemos romantizar essa beleza da colaboração em
precariedade, porque por vezes é um motivo para as instituições e o Estado desvalorizarem as dificuldades que o sector vive
»

Tomás Paula Marques nasceu no Porto em 1994, mas é em Lisboa, na Escola Superior de Teatro e Cinema, que estuda Realização, licenciatura no âmbito da qual realiza Sem Armas (2016), curta estreada no IndieLisboa, e o seu filme final de curso, Em Caso de Fogo (2019), que ganhou o Prémio Orona em San Sebastián. Está actualmente a finalizar a curta-metragem Cabra Cega, enquanto desenvolve um projecto de mestrado na Elías Querejeta Zine Eskola.


No secundário, antes de entrares para a ESTC, estudaste Artes e Indústrias Gráficas. De todas as artes, porquê o cinema?
Estudei Artes e Indústrias Gráficas apenas por ser a única opção artística na escola onde andava. Nesse sentido, tanto o teatro como o cinema eram áreas com as quais sempre me senti muito mais confortável. E encontrei no cinema um espaço com várias camadas de criação e interpretação — sempre me interessou mais esse desafio. Sentia que o cinema continha todas as áreas artísticas que me interessavam: da interpretação à fotografia, à literatura, até às ciências sociais.
Acho que o poder empático e sensorial do cinema foi o que me agarrou a ele. Sensorial pela proximidade da vida, da relação que temos com o tempo e o quotidiano. Descobri no cinema uma espécie de modelação da vida e dos sentimentos de uma forma que nunca senti em nenhuma outra área. Aliás, acredito que o cinema tanto imita as nossas vidas como nós, na nossa vida, imitamos o cinema — como um ciclo infinito de partilha entre os valores semióticos inerentes ao filme e quem o consome.


Então acreditas no cinema como agente de mudança da sociedade? Ou ele é apenas um espelho?
Consigo acreditar no cinema como agente de mudança da sociedade. Parece-me que o cinema não salva vidas de forma literal, mas com certeza influencia vidas, principalmente durante o nosso crescimento — os filmes permitem novos estados de percepção e uma nova relação com a alteridade, abrindo possibilidades de empatia e debate. Ou seja, penso que o cinema também nunca é um espelho directo da realidade, porque existem várias camadas do ponto de vista dxs criadorxs que moldam e distorcem esse possível espelho (mesmo no dito documentário). Apesar de tudo, conseguimos verificar a influência do cinema na história, sobre determinadas problemáticas sociais e representações. Nesse sentido, parece-me importante não subestimar o poder do cinema como catalisador de mudança social. Lembro-me de durante a pós-graduação ter feito uma pequena investigação sobre os discursos políticos na arte contemporânea e me aperceber que nos anos 70, aquando da estreia do Clockwork Orange, se verificaram em Inglaterra variados crimes que simulavam algumas cenas violentas do filme. Claro que isto é um exemplo de um caso infeliz, mas mostra esta relação mimética de que falei. A verdade é que o cinema também já possibilitou incríveis projectos positivos na exploração de ideias de alteridade.


As coisas que te inspiram a escrever e a filmar emanam da tua vida ou são pretextos para entrares em mundos que não são teus?
Sim, sem dúvida que as ideias emanam da minha experiência de vida. Aliás, da minha vida e da daquelxs que me são mais próximxs, porque as ideias costumam sempre vir de contextos pessoais e sociais muito específicos — e por isso, nunca como uma experiência apenas interior, mas sim colectiva.
Eu penso muitas vezes que o cinema, de facto, cria novos códigos semióticos e estéticos que podemos, eventualmente, levar inconscientemente connosco a vida inteira — influenciando o mundo e possibilitando, por vezes, criar a primeira impressão audiovisual sobre certos temas, culturas e problemáticas. Nesse sentido, existe uma grande responsabilidade no acto da representação — especialmente nos casos em que desconhecemos a experiência de quem estamos a filmar. Parece-me essencial que tenhamos sempre consciência da nossa posição no mundo quando criamos ou desenvolvemos algum tipo de representação. O cinema está cheio de possibilidades, mas muitas vezes também podemos perder uma boa oportunidade de estar calados. Para além de partir de experiências pessoais e próximas, dou por mim a compreender como o lado colectivo do filme (também de quem participa nele) está nele latente — pelo menos relativamente aos poucos projectos que desenvolvi. O filme que estou a finalizar, o Cabra Cega, foi um grande exemplo disso — indo ao ponto de existirem 4 argumentistas e 2 montadorxs. Sinceramente, este processo de debate e reorganização constante em colectivo agrada-me bastante e deixa clara qual a minha posição no mundo e como os filmes que faço são também quem me rodeia. Os dois filmes que fiz na escola de cinema reflectem sobre a forma como os protagonistas se debatem com as pressões normativas de género e sexualidade. São sentimentos próximos de coisas que vivi, e a própria postura das personagens vai não só beber disso como da intervenção da equipa do filme.

Em Caso de Fogo foi exibido na edição de 2019 do vistacurta
Fizeste uma pós-graduação em Sociologia. O que é que, em ti, une esse mundo ao do cinema?
A pós-graduação em Sociologia surgiu exactamente pensando na criação cinematográfica. Dei por mim durante a licenciatura a sentir uma ausência de aprofundamento de certos temas e problemáticas, mesmo partindo estas da minha experiência. Para mim, o próprio cinema pode ser visto como uma ciência social, visto que é impossível pensá-lo sem pensar em relações interpessoais, representações culturais e políticas. Não gosto muito de limitar a visão sobre o que pode ou não ser o cinema, mas baseando-nos na sua história podemos sempre compreender que cada filme representa um marco no tempo, desenvolvido em condições muito específicas e, inevitavelmente, com uma determinada posição política e social no mundo. Ou seja, para mim estudar Sociologia foi como encontrar novos métodos de investigação sobre as componentes das histórias que crio e, igualmente, ir percebendo melhor a minha posição no mundo. Poderia tê-lo feito de forma autodidacta, mas penso que o contacto com a Academia, neste caso, foi crucial — não pela instituição universitária em si, mas porque me ajudou a contactar com pessoas de diferentes ciclos de debate, o que acabou por ser extremamente enriquecedor.


As dificuldades e a escassez que conhecemos no meio do cinema português fomentam, a teu ver e segundo a tua experiência, mais colaboração e solidariedade entre os profissionais ou a competitividade?
Acho que não existe uma resposta clara relativamente a esta questão. Se por um lado se sente uma competitividade muito forte — que me parece uma reacção a um medo de não se ter a possibilidade de filmar mais (por haver poucos meios financeiros para tanta gente) — também já vivi alguns momentos de colaboração e solidariedade que valorizei muito. No entanto, acredito que não devemos romantizar essa beleza da colaboração em precariedade, porque por vezes é um motivo para as instituições e o Estado desvalorizarem as dificuldades que o sector vive. Outro problema que me preocupa é a forma como a crítica, a distribuição e a própria cultura do país valorizam um filme. O que acontece é que raramente é dada voz a autorxs que não participaram em festivais internacionais de “classe A”, quando sabemos que para aceder ao circuito dos festivais é muitas vezes preciso ter certos conhecimentos e acessos dos quais nem todxs beneficiam. Sei de variadxs autorxs que nunca tiveram uma única entrevista ou distribuição profunda dos seus filmes em Portugal, mas que têm desenvolvido filmes realmente idiossincráticos dignos de grande atenção. Isto estende-se para problemas como a forma como o machismo, o racismo e a lgbtfobia estão também assentes neste sistema de (des)valorização de vozes. Este silenciamento é bastante claro, e vê-se também, por exemplo, em selecções feitas por instituições como o ICA ou até as próprias companhias de produção. Depois há as inúmeras dificuldades que nós, jovens, encontramos ao começar a produzir filmes sem ceder às estruturas de produção viciadas pré-existentes — por exemplo, eu não consigo concorrer ao ICA para receber financiamento para uma curta-metragem sem ter uma produtora atrás de mim. E tanto o currículo da produtora como o meu vão ser avaliados segundo critérios como os que referi anteriormente. Precisamos de encontrar novas formas de financiar primeiros filmes, novas formas de distribuir cinema, facilitar o apoio a criadores que não tenham necessariamente uma empresa atrás, assim como dar lugar de fala a quem tem sido silenciadx. Igualmente, devemos parar de glamourizar a forma como produções precárias chegam a festivais internacionais. Aliás, quase qualquer jovem que trabalha nesta área precisa de vários trabalhos para sobreviver, restando pouco tempo para os projectos (e tendo de lidar com o cinema como se de um hobbie se tratasse). E acredito que todas estas problemáticas é que acabam por criar más experiências de competitividade e perversidade no sector.



Luís Costa:
«No fundo, sabemos todos que a necessidade da
arte ou, pelo menos, de a produzir é um
profundo dever para com nós próprios
»


Luís Costa realizou O Homem Eterno, que vence, em 2017, o Prémio Sophia de melhor curta-metragem documental, e O Nosso Reino, ambos reconhecidos em festivais nacionais e internacionais. Tem trabalhado em diversos projectos na área audiovisual, entre os quais o Pinehouse Concerts, e fundou recentemente uma produtora de cinema no Porto. Está a pré-produzir a sua próxima curta-metragem, a realizar uma série documental sobre fotografia, e a escrever a sua primeira longa-metragem de ficção.


Quando e como descobriste o cinema?
Durante o meu secundário, altura em que se tomam as primeiras decisões profissionais, por assim dizer, senti uma grande indefinição em relação ao que haveria de estudar depois. As minhas ambições de veterinária, biologia ou psicologia eram cada vez mais frustradas por serem nada mais do que uma escolha estratégica ou confortável.
Ainda por essa altura, eu e o meu pai, apesar de confidentes, pouco falávamos. Acho que criámos o hábito de ir ao cinema regularmente para estarmos juntos sem ter de falar. Por vezes assistíamos a três ou quatro filmes numa semana. No entanto, rapidamente se esgotou em mim uma espécie de imaginário que as salas mais comuns nos ofereciam. E assim, por curiosidade, fui procurando outro tipo de cinema, que, de forma natural, me apaixonou. Acabei por comentar a hipótese de estudar cinema com o meu pai, que, ao contrário do que esperava, me motivou a fazê-lo, por não me imaginar em qualquer uma das outras áreas. Depois disso foi uma decisão muito impulsiva e rápida, mas que parecia acertada.


Tens encontrado pontos de partida na literatura, mas concordarias que os teus filmes são primordialmente visuais, imagéticos, menos verbais — “Se eu fosse bom com palavras, escrevia cartas” (O Homem Eterno, 2017) —? Ou neles as palavras são a outra metade simbiótica da imagem, em plena igualdade de direito cinematográfico?
Mais do que o confronto entre palavras e imagens, há muitos outros elementos em consideração, como o teatro, a arte, a música... O cinema é sempre uma espécie de linguagem paradoxal que conquista a sua independência através da apropriação de várias artes — sem disputa entre si — num novo tempo. Imagino ainda que, se se impusesse uma ideia de direito cinematográfico entre estes elementos, os filmes correriam o risco de não correr risco nenhum, estagnando ainda mais a liberdade que julgamos ter.
No entanto, e ainda que falar dos meus filmes seja, para mim, um acto prematuro, por serem poucos e tão diferentes entre si, diria que sim, são sempre mais imagéticos do que falados. A poesia em particular acaba por ser um ponto de partida muito relevante. Atrai-me que a poesia se faça de imagens impossíveis e das relações entre si. Enquanto que O Homem Eterno é criado através de uma apropriação de uma história e imagens familiares reais e necessita desse texto biográfico (com limites concretos ao nível da ficção), O Nosso Reinonasce de uma ambição mais poética do que narrativa, uma tentativa de aprisionar, sobretudo, a impressão do livro do Valter. Um argumento mais recente, de um filme futuro, Grito — inspirado no romance homónimo do Rui Nunes — sofre da mesma abordagem, uma espécie de exercício de resgate, uma tentativa de filmar a ideia da obra. Agrada-me ainda esta possibilidade de poder trabalhar personagens e universos anteriores aos filmes, até porque me custa bastante criá-los do nada.


O Homem Eterno foi exibido na edição de 2017 do vistacurta
Filmar unicamente para não perder a memória seria talvez um exercício egoísta ou vaidoso. Quando ou como é que sabemos que a nossa memória, e a sua preservação, também pode valer a pena para o outro? O que é que te atrai nessa alquimia generosa de transformar algo teu em algo que tão facilmente se vai fazer apropriar por outros?
A pergunta talvez nasça de um contexto demasiado específico. Quando penso em filmar para não perder a memória imagino, naturalmente, o discurso do meu avô a propósito das suas (muitas) películas Super 8 e outros milhares de fotografias. No entanto, o meu avô não tinha qualquer pretensão cinematográfica. As suas imagens eram uma incógnita até eu próprio as descobrir por mero acaso, o que descarta de imediato uma possível vaidade... e revela apenas uma grande necessidade.
Ainda assim, será difícil dizer que num contexto de ficção (ou documentário externo à nossa própria vida) não filmamos memórias, ou parte delas. O que define a voz dos filmes acaba sempre por ser a experiência pessoal de quem os faz. No fundo, sabemos todos que a necessidade da arte ou, pelo menos, de a produzir é um profundo dever para com nós próprios. Se isso resultar num objecto passível de ser apropriado por alguém, melhor ainda.


O Bando à Parte é uma rede de apoio e partilha constantes, certo? Fala-nos um pouco da tua experiência nesse ambiente de trabalho.
O Bando à Parte é uma estrutura improvável que, de certa forma, trabalha o impossível, sempre com um volume de produção elevadíssimo. Sendo a maior produtora do norte do país, o seu sucesso deve-se sobretudo às pessoas que a fazem e que me ajudaram nos últimos anos. Para mim, a experiência com o Bando é um dos acontecimentos mais significativos a nível pessoal e profissional. Um espaço contínuo de aprendizagem e paixão pelo cinema onde as equipas são pequenas famílias.


Mas mais recentemente também decidiste investir numa produtora própria…
Em 2019 fundei, juntamente com três amigos, o André Guiomar, o Tiago Carvalho e o Miguel da Santa, a Olhar de Ulisses, uma produtora de cinema sediada no Porto. A decisão de o fazer foi, na verdade, um processo natural e inevitável para nós. Veio de uma necessidade de autonomia em relação à produção dos nossos próprios projectos, e ainda de contribuir para a produção no norte do país, tentando também ajudar um conjunto de realizadores e ideias que nos chegam. Acabámos de estrear um documentário do André sobre o bairro do Aleixo, A Nossa Terra, o Nosso Altar, e estamos agora em produção de outros projectos.



 



ARGUMENTO

Das Mãos e
Outros Olhares


por ANABELA MOUTINHO
texto publicado no ARGUMENTO 167




O que me move neste filme é a quietude de tudo aquilo. No subsolo, como lava, gente inquieta, ou talvez não, gente inconformada, com certeza que sim.

Sete anos andei na guerra
E fiz de filho varão.
Ninguém me conheceu nunca
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra coisa não.


São os olhos, nesta recolha de Almeida Garrett, que nos fazem conhecer e, por isso, traçam o destino. A “Donzela que vai à guerra”1, como Joana d’Arc, traveste-se para ser guerreira. Tal como as mulheres, a Mulher, nos idos dos anos 50, em pleno fascismo, retrógrado, conservador, machista e marialva? Não propriamente. A tese deste filme de Marta Pessoa, se alguma, é a de que a par de um certo tipo, acomodado, humilde e inseguro, se construía, sobre ele, um outro, de mulheres que se afirmavam pela negação — ou pela devoção ao que não queriam ser.
Tem uma história triste, a origem desta obra, mas solar, no seu seguimento.

Tanta gente, Mariana, aquela que com grande grau de evidência é das maiores novelas da literatura portuguesa do século XX, teve os seus direitos adquiridos aos herdeiros da sua autora, marido e filha de ambos — Urbano Tavares Rodrigues e Isabel Fraga —, e projecto a concurso no ICA. Não obteve apoio. Não importa se o dinheiro era curto (é sempre) e o número de projectos a apoiar diminuto (até por de mais), nem sequer a posição em que ficou, que desconheço. Travo amargo na boca.

O que parece ter interessado a Marta Pessoa na obra de Maria Judite de Carvalho, como na de Irene Lisboa2, tão esquecida quanto a primeira embora mais martirizada em vida do que ela foi, resume-se a um estilo e a um jeito — o da crónica da observação do quotidiano. Olhar, registar. Contar. Histórias de gente simples, quantas vezes anónima de facto, que retratem seres singulares que sejam tipos colectivos, no sentido de ‘sociais’. Sensibilidade, a que é necessária para ver, domínio, do ritmo do conto curto, sagacidade, na descoberta de temperamentos, perspicácia, punhal para denunciar ou simplesmente para descrever.

Assim, Marta Pessoa lê e vai escrevendo, textos, anotações, frases, ideias, de carácter pessoal, literário ou proto-literário, e todas aquelas páginas começam a pesar-lhe no bolso. Voltar atrás para quê? Se abandonada a adaptação, por falta de recursos, por que não uma nova ideia, uma nova vontade? Entregue a “papelada” à argumentista Rita Palma, sua companheira na produtora Três Vinténs, o que fazer com ela? Talvez isto: um filme dedicado à obra e às figuras dessas duas escritoras para, a partir delas, com elas e para além delas, revisitar o passado, exercitar a memória e compreender melhor o presente a partir desse ‘pas de deux’.
Nada de novo, num certo sentido: Lisboa Domiciliária, Quem Vai à Guerra, O Medo à Espreita (para nos atermos às obras de longa-metragem, documentais, todas elas) foram isso mesmo. O que é “solar”, como acima indicado, em Donzela Guerreira, a longa-metragem que se lhes seguiu e há pouco estreou, é que agora o dispositivo é construído (reconstituição cuidadosa de época nos figurinos, cenários e adereços de todo o tipo, recurso a arquivos fotográficos e fílmicos3), multifacetado (não se centra numa personagem mas fá-la foco de irradiação para percorrer uma sociedade e uma época) e complexo (porque é tessitura cerzida de múltiplos materiais, planos como naturezas-mortas, ou seja, pulsantes de vida implícita). Dos velhinhos e das velhinhas que moram naqueles apartamentos que diríamos sem vida, das mulheres, viúvas ou enfermeiras que acompanharam militares na guerra colonial e os viram ficar sem vida, literal ou metaforicamente falando, dos homens e das mulheres que viveram em luta contra o regime e disso fizeram a vida de todos nós, ficámos a conhecer uma estratégia — observador não participante — e um resultado — desfiar de memórias, confidências consentidas, amarguras reveladas. São-no sobre uma época que, assim, aprendemos ou recordamos. Sem testemunhos não há História. Mas sem quem a reconstrua a História correria o risco de se perder por ausência de protagonistas directos. O que Marta Pessoa fez, neste seu original filme que escolhi para pensar, mistura de registo documental e de ficção, foi resgatar mulheres de carne e osso a partir de letras, espelhos, silêncios, olhares e vozes. E mãos4.

“Levei anos — quantos? — a querer fugir duma solidão que me aterrorizava só de pensar nela, passei o tempo a acreditar nas pessoas e logo a deixá-las tombar das minhas mãos abertas.5

Provavelmente não por acaso, o filme inicia-se com um grande plano de mãos abertas, repousadas nas suas costas; descansadas, oferecidas, desistentes? Ou meramente quietas? ‘Mãos quietas’, título e capa do livro da Emília Monforte, protagonista desta história, em contraposição com as irrequietas daquelas que seguem a cartilha dos papéis tradicionais, muito laboriosas e incansáveis nas múltiplas tarefas que delas são esperadas. Mãos quietas cujo único movimento com significado é o de martelar nas teclas da máquina de escrever, e assim fazer o mundo ser, e voar. As mãos são olhos e, na pessoa certa, transformam-se em olhares. Como as de uma resistente por ser Outra face àquilo que o fascismo urgia das mulheres, sopeiras ou donas de casa — discrição, submissão, apagamento, desaparecimento. Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.

Coisas algumas, contudo:

1. Maior atenção aos interlocutores e aos espaços onde habita Emília do que a si mesma enquanto corpo e rosto. Daí o recurso a tantas imagens espelhadas dela, como se nos fosse verdadeiramente impossível fazer caber aquela pessoa cuja verdadeira identidade e cujo real sentir se dão, indirectamente, através do que escreve e diz, mais do que directamente surge e é mostrado.

2. Vários níveis de realidade sonora: a da sonoplastia em geral (barulhos da cidade de Lisboa, onde a acção decorre), a da banda sonora (particularmente feliz a escolha da canção de Tony de Matos6), a da locução directa (da entrevistadora radiofónica, da criada Etelvina…), a da voz-off persistente em todo o filme (da protagonista) cujo maior poder é tomar a função de uma verdadeira voice-over omnisciente, por conduzir uma narrativa de que só ela sabe o princípio, o meio e o fim. Logo, Emília é uma voz projectada na sombra, o que adensa o seu encanto e reforça a metáfora em que se inscreve, a da coerência face ao rumo de independência subterrânea que escolheu.

3. A par dos olhares que estes sons nos dão, os que se passam no “Estúdio Aurélio”7, à Praça do Chile, fotografando as criadas da pensão onde Emília está hospedada, e ela mesma. As primeiras, sendo quatro, com duas fotos cada uma com quase imperceptíveis diferenças de expressão entre si, constituem um tratado psicológico da mulher no Estado Novo: arredia, desconfiada, triste, ilusoriamente provocatória. Emília, essa, surge primeiramente de pernas para o ar — das mãos quietas à voz na sombra à imagem invertida. A emancipada, olhar irónico em ambas as provas.
Cheia de muito, portanto:

Das mãos abertas tombando pessoas — seja o Luís de Tanta Gente, Mariana como o de Donzela Guerreira, sejam todos aqueles em que não mais podemos acreditar —, “Cada um de nós é um ilhéu — ilhotas flutuantes em mares profundos e larguíssimos de solidão. De abandono.8” Emília Monforte, resistente, coerente, emancipada, lenço verde-claro na cabeça, caminhando em direcção ao Tejo, sustendo o passo à beira da água, olhando o rio. As colunas enquadram-na. E nós com elas, enquanto o «narrador-salvador» não chega nem tudo o mais que ficou por dizer de filme tão fantástico assim.



1. In Romanceiro, de Almeida Garrett (1851).
2. Homenageadas por dedicatória no final do filme e pela inclusão, num plano, de exemplares de primeiras edições de Esta Cidade!, de Irene Lisboa (1942) e de Tanta Gente, Mariana, de Maria Judite de Carvalho (1959).
3. Arquivos fotográficos da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação Gulbenkian, e arquivo cinematográfico do ANIM.
4. Além de três actrizes de eleição, Dina Félix da Costa, Joana Bárcia e, em particular, Anabela Brígida, a brilhar com especial fulgor no papel principal.
5. Maria Judite de Carvalho, Tanta Gente, Mariana. Obras Completas, vol. I, Edições Minotauro, 2018, p. 33.
6. “Lisboa Acordou”, do filme Os Rapazes do Táxi, de Constantino Esteves (1967).
7. Uma “private joke”, dado que o director de fotografia do filme é Aurélio Vasques.
8. Irene Lisboa, O Pouco e o Muito — crónica urbana, Editorial Presença, 1997, p. 221.


 



ARGUMENTO

«Demorámos muito a ter e a manter
certos direitos. Demorámos
muito a ser nação»

Margarita Ledo


Entrevista de Rodrigo Francisco,
publicada no ARGUMENTO 170
Outubro 2021

Margarita Ledo é escritora e cineasta, catedrática de Comunicação Audiovisual na Universidade de Santiago de Compostela. Do seu romance Porta Blindada (1990) sai a personagem masculina de A Cicatriz Branca (2012), o seu primeiro filme de ficção, assumidamente feminista. As suas longas-metragens Santa Liberdade (2004), Liste (2007) e Nación (2020) são exibidas nos Festivais de Málaga, Barcelona, Sevilha, DocLisboa, e em 2017 o festival DocumentaMadrid dedica uma retrospectiva a esta realizadora nascida em Castro de Rei, Lugo.

Coordena o grupo de Estudos Audiovisuais e a série “Para uma história do cinema em língua galega”, com três volumes já publicados: Marcas na Paisagem (2018), A Floresta e as Árvores (2019), De Ilhas e Sereias (2020). Recebe o Prémio Nacional da Cultura Galega em 2008, em Cinema e Audiovisual, e é membro da Real Academia Galega.

Constrói os seus filmes através dos traços de toda a vida, e tanto nas conversas como nos sucessivos filmes e livros transparecem as suas preocupações e interesses. Depois de ilustrar os limites e a grandeza do século XX em três longas-metragens, com episódios épicos (Santa Liberdade), figuras históricas que encarnam lutas (Liste), ou a Galiza através da mulher, do exílio e da migração (A Cicatriz Branca), Margarita Ledo apresenta Nación, que foi acolhido com entusiasmo de público e crítica, tendo estreado em Espanha em Março deste ano, em onze cidades. O filme centra-se num grupo de ex-trabalhadoras da fábrica galega Pontesa, que laborou entre 1961 e 2001, e tem a precariedade e a procura de auto-estima a pesarem nos pratos da balança de uma narrativa vigorosa e plena de ressonâncias, retrato feminino, geracional e colectivo, a propósito do qual escreveu o jornal Público.es: Poucos filmes recentes são ao mesmo tempo tão exigentes e oportunos como este ensaio poético presidido por uma amálgama de materiais, contando com recursos do documentário e da ficção.



«Vi nas redes sociais um vídeo em que uma delas,
dirigindo-se para nós, para um “fora-de-campo”, dizia:
“não trabalhem de graça nunca, por favor.
Que vão à merda!”»


É impossível ficar indiferente ao exemplo das trabalhadoras — a sua coragem, a luta na rua e nos corredores do poder, uma greve geral num contexto que era, convém sublinhar, o dos anos 1980. Até que ponto, antes de iniciar o filme, conhecias a história destas mulheres e da Pontesa?

A ideia inicial progride da perda do direito ao trabalho para as mulheres e do seu contexto — real e imaginário — para o espaço doméstico em resultado da chamada “reconversão industrial” dos anos 1980. Escolhi a Pontesa porque quantitativamente as operárias eram maioritárias, porque se organizaram e ocuparam lugares nos comités, porque criaram laços entre elas — o que hoje chamamos “fraternidade” —, porque, por acaso, vi nas redes sociais um vídeo em que uma delas, dirigindo-se para nós, para um “fora-de-campo”, dizia: “não trabalhem de graça nunca, por favor. Que vão à merda!” Procurei-a. O seu nome é Nieves. Passou a ser a personagem a partir da qual partem todas as outras, uma espécie de Sibila que antecipa e que, apesar de não confiar no futuro, continua activa. E ao começar a trabalhar percebi que ainda resistiam, que estavam em litígio com um investidor que detém parte dos terrenos do Grupo de Empresas Álvarez, ao qual pertence a Pontesa. E sim, percebi melhor o caso na construção do filme.

Nieves, claro, é fascinante, a vários títulos. Como espectadores, uma sensação muito gratificante enquanto vemos Nación é o filme ir para lá da condição de trabalhadoras — e interessar-se genuinamente pelas várias mulheres. E é curioso, elas parecem sentir-se muito confortáveis (embora tenha sido seguramente uma experiência nova para algumas delas).

A princípio foi o encontro com Nieves na horta da sua casa, falando ao acaso até surgirem coisas e causas que tínhamos em comum. Ela foi-me levando às outras mulheres e eu aproveitei a sessão prévia do julgamento, em Setembro de 2019, para observar e fazer a minha escolha porque queria que fossem mulheres diferentes. Não queria ficar só pelo âmbito laboral, mas mostrar vestígios das formas de submissão das mulheres “desde a noite dos tempos” e do silêncio. Isso é antecipado pela esfinge da primeira sequência: “…apagando a escuridão dos meus dedos”. Para sermos conscientes da implicação necessária, no filme foi fulcral a relação de transferência que estabelecemos entre elas e as actrizes e o activar do mesmo princípio: actuas para ti mesma, para dentro; actuas para mim e para uma obra que nos acolhe e nos expressa; e actuas para fora, para quem vai ver o filme. E ao ensaiar foi-se sentindo esse arranjo colectivo que confere textura a todo o filme, até se produzir um entrecruzar de vontades, ambições, de dar “o corpo ao manifesto” que sobressai em Nación.



«É o que significa Nácion: o paradoxo da soberania
popular, o reivindicar com actos a cidadania.»

“Vínhamos para a fábrica para escapar de cavar a terra. Bom, continuámos a cavar terra, mas tínhamos um salário que a terra não nos dava.” Fala-se muito da luta operária, mas poucas vezes vimos o que tem de específica essa luta para as mulheres. E como pode ser transformadora. Como foi captar essa experiência de resistência para estas mulheres?

As mulheres recuperam, através do filme, a sua experiência e aqueles momentos de existência que nos falam de um antes e um depois, como é a passagem da terra e do trabalho não remunerado para a fábrica, uma vez que filmo sempre onde os acontecimentos se deram, lugares que funcionam como dispositivos de memória que fazem emergir a ferida e também a podem sarar. Porque, apesar de terem entrado novas na fábrica, com 14 anos, logo criaram relações entre si, reclamaram coisas pequenas e grandes, tomaram posição e foram solidárias com o movimento social à sua volta — contra a construção da auto-estrada AP-9, por exemplo, ou em prol das greves de 1972 em Vigo —, perderam os medos. E como somos todas a favor da economia produtiva, também filmámos as cerâmicas Arcadia ou as do Castro, que continuam a fabricar louça.


Podemos dizer que construir um documentário, mais do que confirmar factos, é desafiar o distanciamento dos episódios históricos, conseguir abrir horizontes (talvez chegar até temas muito mais universais).

Os documentos têm um estatuto de prova e, ao mesmo tempo, são um dispositivo de distanciamento que procuro inserir, como temporalidade diferente e contraditória, no presente. Por isso procuro sempre três tipos de arquivos documentais: os pessoais, como filmes amadores e familiares; os institucionais, neste caso, a reportagem de propaganda no momento da inauguração da Pontesa; os dos meios de comunicação, aqueles que deveríamos conhecer mas que muitas vezes não são divulgados. Este aspecto foi um dos que chamaram a minha atenção: ver muito material em bruto, sem edição, na televisão pública, que nos dá muita informação não apenas sobre o confronto de interesses na rua e na ocupação do espaço público, para comprovar o que está a acontecer, mas também como modalidade do trabalho jornalístico. Por exemplo, ter tempo para seguir acontecimentos e para filmá-los a partir de dentro. E hoje esta boa prática desapareceu.


Fala-nos um pouco do título, Nación. Parece vincular-se a um reconhecimento de soberania, e sem dúvida, uma busca de cidadania.

Eu trabalho, como criadora e como investigadora, em torno das políticas da diversidade e, no caso, dos small cinemas. São parte de uma Nação sem estado, Galiza, e da sua cultura. A partir dela, expresso-me e relaciono-me com as outras culturas. Num momento do filme, duas personagens dizem uma frase: demorámos muito a ser nação… quer dizer, demorámos muito a ter e manter certos direitos. Porque quando te retiram o direito a um trabalho assalariado, que é o que te permite construir a tua independência, poder decidir, excluem-te da sociedade, da nação. Esse sentido da igualdade impregna todo o filme e é o que significa Nación: o paradoxo da soberania popular, o reivindicar a cidadania com actos.


Nación, Margarita Ledo (Galiza, 2020)
no Cine Clube 21 de Outubro às 21h00

Gostaríamos de saber mais sobre o emprego dos materiais de arquivo em Nación. É uma mistura forte: fotos de antigas minas de carvão de As Pontes do fotojornalista Xosé Castro, o fragmento de Lejos de los Árboles de Jacinto Esteva, imagens da TVE…

As fotos de Xosé Castro, de uma expropriação de terras para a construção de uma central térmica, é o ícone contemporâneo da luta camponesa na Galiza e do papel fundamental das mulheres nela. Uma luta que ressoa na que desenvolvem as operárias do têxtil, da cerâmica, das conservas… e os seus vestígios residem em gravações das próprias, como as da fábrica Odosa, recuperadas no projecto “Contentor de Feminismos”, por exemplo. Além disso, usamos arquivos da nossa particular saída da fábrica, a da La Artística-Alonarti (1928), filmada pelo José Gil, o nosso Lumière, para conferir o passado do presente, que é um dos fios invisíveis de Nación. Mas o filme não se fica pelo mundo laboral, vai mais além. Seja desfiando a memória da repressão sexista na guerra e no pós-guerra, ou o modo como fomos representadas pelo patriarcado através de uma das suas instituições, a Igreja Católica, e como este estereótipo de histéricas foi incorporado por todo o tecido social. Porque o ritual das devotas que deitam o demo pela boca na romaria da Virgem do Corpiño leva-nos para o lugar onde nos permitem o grito. No resto das esferas já sabemos: “caladinha estás melhor.” E quem melhor o filmou foi Jacinto Esteva. As formas do patriarcado são mórbidas, estão em todas as esferas… e o feminismo tem como missão sair delas. ︎


 


O Cine Clube de Viseu oferece a todos a oportunidade de experienciar, descobrir e aprender mais sobre o mundo do cinema, audiovisual e cultura visual.
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