ARGUMENTO
Viseu, 1985, o primeiro
ciclo Pasolini
ciclo Pasolini
Viseu, 1985, o primeiro ciclo Pasolini
com José Fernandes e
Joaquim Alexandre Rodrigues
Joaquim Alexandre Rodrigues
Texto publicado no ARGUMENTO 172
Abril 2022
Melhor do que ninguém, os nossos cineclubistas JOAQUIM ALEXANDRE RODRIGUES e JOSÉ FERNANDES acompanham este momento geral de evocação pasoliniana e oferecem uma perspectiva do ciclo dedicado ao mestre, em 1985, no Cine Clube onde já estavam (e continuam a estar).
É pelo olhar dos dois responsáveis do CCV que revisitamos o ciclo apresentado na Casa-Museu de Almeida Moreira, no centro da cidade (actual Museu Almeida Moreira), onde um auditório de 80 lugares recebia as projecções do Cine Clube.
Uma entrevista para aqueles que não acreditam que os filmes de Pasolini eram vistos em Viseu na década de 80, com destacada participação de público. O Cine Clube de amanhã deve seguir o exemplo.
︎
PASOLINI, UMA ESPÉCIE DE TRANSIÇÃO
PASOLINI, UMA ESPÉCIE DE TRANSIÇÃO
Pasolini era um cineasta importante, e nunca antes tínhamos tido a oportunidade de organizar um ciclo.
José Fernandes
Pasolini era um cineasta importante, e nunca antes tínhamos tido a oportunidade de organizar um ciclo.
José Fernandes
Pasolini era um cineasta importante, e nunca antes tínhamos tido a oportunidade de organizar um ciclo.
José Fernandes
Pasolini era um cineasta importante, e nunca antes tínhamos tido a oportunidade de organizar um ciclo.
José Fernandes
JOSÉ FERNANDES [JF]: Não sei o que nos levou a organizar este ciclo, mas talvez tenha sido o facto de nos parecer que Pasolini era um cineasta importante. Por isso e porque nunca antes tínhamos tido essa oportunidade.
JOAQUIM ALEXANDRE RODRIGUES [JAR]: O cinema italiano tem a seguir à II Guerra Mundial uma importância central com o neorrealismo, que é a representação do olhar marxista sobre a realidade. E tem nomes fabulosos. Entretanto as coisas evoluem e o Pasolini faz esta espécie de transição...
...é a evolução da militância no cinema, também.
JAR: Incorpora a memória de literaturas e de formas de criatividade transgressivas. Incorpora o lado do prazer na ascese neorrealista. É uma espécie de evolução.
É interessante a sua obra ter peso e influência já na altura.
JAR: Tudo isto resume os valores libertários da Europa. Salò é um filme extremamente duro, ainda hoje é uma chapada. Claro que depois houve muitas regurgitações... a partir de 1991 deixei de ler sobre cinema e estou muito desactualizado acerca de tudo aquilo que diz respeito a nomes, mas diria que 90% da produção cultural actual são covers. E isso leva-me até ao A Grande Farra. Precisava de ver os dois novamente, pois surgiu-me agora essa analogia e posso estar errado, mas parece-me que é um pouco uma regurgitação disto.
E não tinhas visto o Salò antes, viste-o em 1985 no ciclo do CCV?
JAR: Sim.
Pois, é que antes só havia essa opção. Se o espectador queria ver um filme, não tinha outra opção que não fosse a de se deslocar.
JF: Nesta altura começaram os videoclubes. Foram uma praga.
JAR: E mesmo da óptica do espectador havia o first take, tinha de se apanhar a mensagem à primeira, porque não havia a possibilidade de voltar atrás para ver novamente. Hoje em dia, é facílimo, as pessoas voltam atrás e param quando querem. Antigamente não, ou se via, ou não se via.
︎
ANATOMIA DE UM CICLO
ANATOMIA DE UM CICLO
Havia no CCV aquela abordagem mais de intervenção, de escolha cinéfila para intervenção cultural, e a parte da curtição cinéfila, que estava a sobrelevar-se cada vez mais. Este ciclo é exatamente isso. E o do Fassbinder também.
Joaquim Alexandre Rodrigues
Joaquim Alexandre Rodrigues
Havia no CCV aquela abordagem mais de intervenção, de escolha cinéfila para intervenção cultural, e a parte da curtição cinéfila, que estava a sobrelevar-se cada vez mais. Este ciclo é exatamente isso. E o do Fassbinder também.
Joaquim Alexandre Rodrigues
Joaquim Alexandre Rodrigues
Expectativa sobre alguma reacção adversa que o ciclo poderia causar, havia?
JF: Não tivemos nenhum problema. De facto, éramos um nicho, apesar de, por vezes, conseguirmos abranger públicos mais alargados, as instituições sentiam-se mais ou menos seguras de que não éramos assim tantos para conseguir abanar o sistema.
JAR: Onde se notava mais esse incómodo era quando havia algum toque religioso... a sociedade, entretanto, foi-se secularizando, as religiões agora têm muito menos força, e então, quando havia mais qualquer coisa, era mais por aí do que na onda dos costumes.
Na maior parte dos países, mesmo naqueles em que a censura fora abolida ou agonizava em estado terminal, proibiram a exibição da obra. Em Portugal também. Salò foi um dos dois filmes estreados em Portugal que foram censurados, já depois do 25 de Abril. Para não falar dos tribunais italianos que ordenaram a destruição do negativo. Daí a curiosidade sobre a polémica, mesmo sendo o ciclo em 1985.
JAR: O Maio de 68 tinha uma carga marxista fortíssima, mas tudo foi incorporado perfeitamente pelo sistema… os valores libertários do sex, drugs and rock & roll, as juventudes urbanas que adquiriram poder de compra e que vão para as universidades, dão aulas, estabelece-se um conjunto de valores que leva à cosmopolitização, abertura dos mercados que vem desse Maio de 68. Ora, uma das expressões desses valores mais seminais, mais estruturais de há 30 ou 40 anos, do Maio de 68, no cinema, é Pasolini, precisamente com esse lado do prazer, até bastante secular. Mas o Dany Le Rouge, o cabeça de Maio de 68, líder parlamentar de uma das correntes mais pujantes de pensamento político da Europa, que são os Verdes, tem textos desta altura que são concebidos num determinado contexto histórico que depois o pessoal de agora... Fico muito triste quando vejo coisas como aquela que aconteceu no outro dia, do Chico Buarque abjurar uma canção sua que foi construída com aqueles valores, com aquele valor axiológico. Temos de perceber que isto é um percurso em que vai havendo mais tropeção, menos tropeção, mais ou menos cabeçadas, mas globalmente, os valores de Maio de 68, no cinema, que me lembre, são expressos por este génio absoluto.
JF: Por este e outros.
JAR: Estive nas sessões e posso quase garantir que a sala estava cheia em cada uma das sessões. Foi um sucesso de público. Aliás, nessa altura, nós estávamos em crescendo e é esta ideia de que o CCV e a cidade estavam a passar por uma certa ascese, de ressaca dos anos quentes e de alguma militância que havia, partidária, com a ideia de que toda a atividade que não era cultural, era sócio-cultural, que, aliás, agora há um certo regresso a essa ideia. Fico até muito admirado, mas faz parte, a história é cíclica.
E nós, na altura, estávamos a viver, mesmo no CCV, pressões que não eram assumidas em termos de trincheira, mas havia aquela abordagem mais de intervenção, de escolha cinéfila para intervenção cultural e a parte da curtição cinéfila. E aquilo que estava a sobrelevar-se cada vez mais, era a parte da curtição cinéfila. Este ciclo é exactamente isso. E o do Fassbinder também (em Outubro de 1986).
Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
︎
1985, A CIDADE, O CINE CLUBE
Na
altura o pelouro da cultura era uma pasta sem orçamento, uma
excrescência da actividade municipal. Nas zonas altas da cidade não
havia água para as pessoas tomarem banho, também há que entender
as prioridades. Não havia dinheiro para nada. Em 1986 entrámos na
CEE, até lá andámos aos repelões.
Joaquim Alexandre Rodrigues
1985, A CIDADE, O CINE CLUBE
Joaquim Alexandre Rodrigues
E o Cine Clube passa a dispor de projecção em 35 mm.
JF: ...E depois o projetor de 35 mm que esteve connosco a partir de Agosto, foi inaugurado na feira de São Mateus, passando posteriormente para a Casa-Museu de Almeida Moreira. Aí fazíamos duas sessões ao fim-de-semana, e cada filme podia ser visto por 200 pessoas.
Sim, importa realçar que a Casa-Museu tinha sessões duplas, toda uma dinâmica cultural para a qual também a Área Urbana contribuía.
JF: Depois, em 1987, foi criado o Fórum Viseu – Serviço Municipal da Cultura e Comunicação – que tinha por ali as instalações. Portanto, o funcionário deixou de morar ali e essas instalações foram ocupadas pelo FV, que era uma estrutura com financiamento tripartido.
Em relação às sessões, para justificar sextas e sábados, de certeza que não teriam tantos problemas de público como este editorial do Argumento, de Novembro de 1985, faz crer. “Esquece-se vossa excelência de pagar as quotas, vossa excelência não aparece nas sessões e se, por acaso, vê algum filme, nem diz se gostou, o que pensou. O Argumento lá vai saindo mesmo assim, apesar do seu egoísmo e da sua preguiça (...)”
JAR: De certeza que não, até porque devem ter estado cheias.
JF: Isso é uma tacada bem violenta. Foi o Alex que escreveu... Talvez se refira ao ciclo anterior... Neste ano de 1985, para além de tudo o resto, estávamos a assinalar também os 30 anos do CCV. Na sequência da minha ida ao Festival de Tróia, lembro-me de ter sido recebido pelo senhor coronel, dono da Lusomundo, que permitiu termos uma estreia nacional a assinalar os 30 anos. Um filme do Wim Wenders, Movimento em Falso, e o filme Máscara, este em estreia nacional.
É importante referi-lo: o CCV já tinha 30 anos de trabalho contínuo.
JAR: Quem andava a falar de forma contínua, semana atrás semana, a dizer coisas, era o CCV. Depois, apareceu a Área Urbana que acabou por resultar no Teatro Viriato. Mas até lá, era o CCV.
JF: A partir daí, a Câmara de Viseu começou a investir também na área cultural, até aí era zero, completamente. E o processo de recuperação do Teatro Viriato só começou em 1985.
JAR: O pelouro da cultura era atribuído na altura ao vereador da oposição. Era uma pasta sem orçamento, uma excrescência da actividade municipal... nas zonas altas da cidade não havia água para as pessoas tomarem banho, também há que entender as prioridades. Não havia dinheiro para nada. Em 1986 entrámos na CEE, até lá, andámos aos repelões. Não o saberíamos, na altura, mas em 1985 estava a acontecer uma mudança de paradigma. A nível nacional, não havia dinheiro. Vínhamos da segunda intervenção do FMI, em 1983/84, depois de 77, e que somadas fizeram com que houvesse uma perda do poder de compra dos portugueses na casa dos 20%, o que é uma brutidade. Não havia rigorosamente dinheiro nenhum, a inflação era na casa dos 20-30%... este enquadramento é importante para se perceber como andávamos atarantados.
Em 1986, entrámos na CEE, já na altura era um bocado mítica, acabando por criar alguma pressão para a normalização do país, e aqui, em Viseu, em termos culturais, havia uma monofonia em termos de linguagem, de cultura urbana: havia o Cine Clube, mais nada. É nessa altura que surge a Área Urbana, e começa-se isto. O que havia era uma coisa ruralizante.
Não havia Ministério da Cultura, o Município não tinha orçamento. Pergunto-me acerca das dificuldades de orçamento.
JF: Os nossos pontos de apoio eram as quotas, o cinema no parque (Aquilino Ribeiro) e na feira de São Mateus.
Apesar da falta de financiamento, lemos no editorial de 1985: “secção de fotografia, cursos de fotografia, concursos de fotografia, exposição de fotografia, biblioteca (até porque já havia a sede nova) e as sessões duplas”. Já agora, estas sessões eram semanais?
JF: Sim, sim! O máximo de espaçamento era de 15 em 15 dias. Mas, normalmente, eram sessões semanais. Nós nesta altura já tínhamos conseguido a chave do auditório. Coisa que, até à vinda da máquina de 35 mm, não era possível, porque estávamos dependentes do funcionário do Museu Grão Vasco que morava no rés-do-chão do Almeida Moreira. Mais uma limitação terrível. Se bem me lembro, o primeiro grande subsídio que nós obtivemos, que nos permitiu comprar um computador, que na altura custou 700 contos, foi o da Gulbenkian.
JAR: E nessa altura o CCV pagava renda. Nós testemunhámos aquilo que a Gulbenkian representou como motor da cultura em Portugal. ︎