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Observatório:
Entrevista a Bruna Ferreira

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Entrevista a Bruna Ferreira


Entrevista publicada no ARGUMENTO 181
Fevereiro 2025




Ilustradora e animadora, natural de Braga, Bruna Ferreira é licenciada em Artes Plásticas, e concluiu em 2024 o Mestrado em Ilustração e Animação. É, como se vê nesta entrevista, uma admiradora de cinema. No seu percurso, desenvolveu um fascínio pela representação de detalhes banais do dia-a-dia através do desenho e do vídeo, e através do cinema de animação procura criar uma convivência entre estas duas formas de arte. Felizmente, vamos publicar mais trabalhos seus por aqui, em 2025.

Vamos começar pelo início. A queda para o Hitchcock é uma evidência. O que pesa mais nesse gosto: são os filmes, um fascínio com a personalidade do realizador, ou os temas e a imagética da sua arte?
Na verdade, fui introduzida ao universo de Hitchcock há cerca de dois ou três anos. O interesse em conhecer quem foi e a sua filmografia surgiu através da leitura do livro Os Filmes da Minha Vida, de um dos meus realizadores favoritos, François Truffaut. O que me fascina no Hitchcock é a forma como os seus filmes reflectem complexidades suas, aspectos muito íntimos como fetiches e desejos. Pelo menos nos filmes que tive oportunidade de ver, sinto que conseguimos olhar directamente para Hitchcock através das suas personagens.
Ainda não sei bem como os filmes dele influenciam o meu trabalho, mas este aspecto atrai-me muito. Bem como o foco nos pormenores como pista para momentos de tensão, como um tremer das mãos, um olhar nervoso, etc.

Como é que os clássicos ganharam espaço no teu processo criativo? Vendo o teu trabalho, encontramos ilustrações e loops animados criados a partir de cenas de filmes de Jonas Mekas, Truffaut e Kiarostami. Poderias partilhar um pouco do teu processo criativo? Desde o que te leva a desenhar/animar estas cenas, à motivação para criar a partir do desenho cego.
O desenho cego surgiu do meu projecto final da licenciatura. Foi no auge da pandemia, e a premissa foi representar essa nova realidade. Optei por recorrer ao desenho cego como forma de reflectir sobre o facto de estarmos confinados a quatro paredes, “cegos” face à incógnita que nos parecia o futuro naquela altura. Decidi então registar todas as minhas aulas e conversas com amigos, que eram todas por Zoom, ou seja, confinados a um ecrã.
O que me fascinou neste processo, graças à prática do desenho cego, foi a comunhão que se cria entre quem desenha e o objecto retratado. A atenção está toda nesse objecto, na mediação entre o olhar e a mão; não em como fica o desenho final. Obriga-nos a desprender de preconceitos e perfeccionismos, e abraçar o erro em prol da compreensão e apreensão do que está à nossa frente. Numa aula, um dos meus professores na faculdade disse que desenhar é aprender a ver. E sinto que foi com este exercício de desprendimento de preconceitos que comecei realmente a aprender a ver e a desenhar.
Foi à boleia desta quase necessidade de ver com as mãos que comecei a retratar cenas de filmes que adoro. Por exemplo, os loops animados que fiz de dois pequenos excertos do filme Reminiscências de uma Viagem para a Lituânia (1972) de Jonas Mekas foram o resultado dessa vontade: um como forma de reflexão acerca de festas em família (que durante a pandemia nos parecia algo muito distante), e outro sobre o papel que uma mãe assume, aliada à velhice. O processo foi bastante simples. Tinha o filme à minha frente, no computador. E cada frame que aparecia, desenhava. Quando terminava o desenho, fazia play e passava ao frame seguinte.


Desde que me lembro que encontro refúgio nas pequenas coisas, nas banalidades do dia-a-dia. (...) E aquilo que me é familiar é o que sinto vontade de registar.



O teu trabalho incide sobre o registo de pequenos detalhes do quotidiano: sejam filmes que gostas, cafés com amigos, momentos de pausa no carro, ou almoços em família. Num mundo em que muitos se refugiam na reinvenção do real e na ficção, o que significa para ti este registo de momentos e preservação de memórias? O que te atrai nestes momentos?
Desde que me lembro que encontro refúgio nas pequenas coisas, nas banalidades do dia-a-dia. Como sabemos, a rotina define-se pela repetição de certos rituais, e através dessa repetição é criado o sentimento de familiaridade. E aquilo que me é familiar é o que sinto vontade de registar. A vontade de desenhar momentos como almoços em família, cafés com amigos, etc. advém do mesmo impulso que leva alguém a tirar uma fotografia. Surge do exercício consciente de captar algo, motivado pelo desejo de preservar essas memórias. Surge também da necessidade de nadar contra a maré, que é a fugacidade desses mesmos momentos. Eu sinto que estou a vivê-los mais intensamente se os estiver a desenhar, porque me obriga a atentar a cada pormenor e detalhe que me poderiam escapar se não os estivesse a registar. No fundo, gosto de representar os meus momentos de refúgio, onde passaria uma eternidade, se pudesse. E suponho que apenas seja possível eternizá-los através de qualquer tipo de registo: seja em filme, fotografia, desenho... “The miracles… Miracles of every day, the little moments of Paradise that are here now. Next moment they’re gone” (Mekas, 2000).




Páginas do diário de Bruna Ferreira

“Jean Pierre Léaud”
Mesmo quando trabalhas digitalmente, como foi o caso da ilustração da contracapa, a tua arte possui uma estética muito analógica — não só pelos pincéis digitais utilizados, mas pela própria expressividade do traço, que se mantém tão solta e fluida, como se tivesse sido desenhada em papel.
Gosto da expressividade que obtenho a riscar com o lápis ou marcador no papel e, sem dúvida, acabo por mimetizar essas texturas quando trabalho em digital. Sinto que trazem uma outra manualidade e alma às ilustrações. Mas, para mim, a essência de criar em digital ou em papel é completamente diferente. Não só na questão da fluidez do traço e da manualidade, mas na própria limitação de recursos e na quantidade de tentativas que temos para representar algo. No desenho em papel, em que temos tentativas mais reduzidas, somos obrigados a ter uma maior abertura ao erro. No digital podemos tentar fazer, por exemplo, o pormenor do casaco de uma personagem vezes e vezes sem conta, até alcançar a “perfeição”. Isto não é algo necessariamente mau, nem algo que considero que seja uma perda. É apenas um aspecto que torna diferente o processo do mesmo desenho.

Noutro ponto, nos últimos anos, tens procurado dar os teus primeiros passos na animação 2D, tendo descrito a mesma como um bom veículo para unir a tua paixão por cinema e desenho. O que sentes que o teu trabalho gráfico pode "ganhar" no processo de transposição para a imagem animada? Já tens ideia do tipo de histórias e mensagens, ou algum artista de referência…
Entusiasma-me a possibilidade de expandir o universo desses desenhos. Para já, interessa-me explorar como consigo dar vida aos meus momentos de refúgio, que já referi, através da animação. Animar conversas com família e amigos, gestos, e as mais pequenas coisas que para mim fazem todo o sentido. Dentro deste caminho temático, a Laura Gonçalves surge como uma grande referência. Gosto especialmente da curta-metragem Três semanas em Dezembro (2013), pela forma intimista e diarística como nos apresenta as rotinas da sua família durante a época do Natal, sempre com uma grande sensibilidade para os pequenos pormenores, acções e gestos daquelas pessoas.



“HITCHCOCK STUDY” (DESENHO DIGITAL, 2024). Os trabalhos DE BRUNA FERREIRA constituem, em 2025, uma presença permanente nestas páginas
Por fim, a pergunta-mãe de todas e que não pode faltar é: “Como perspectivas o futuro da ilustração, tendo em conta muito do que está em jogo com ia e afins?”
Não consigo ter uma visão muito clara do que será o futuro da ilustração, mas confesso que me assusta um pouco. Apesar de reconhecer que para algumas áreas pode ser uma ferramenta útil, considero, para as artes, que pode ter um efeito oposto. Não me incomoda que a ia seja usada por artistas como uma ferramenta criativa. O problema dá-se a partir do momento em que deixamos de valorizar a componente humana do trabalho do artista, e passamos a função de “fazer arte” às máquinas. Criar arte pode funcionar como uma extensão da nossa individualidade, das nossas virtudes e falibilidades, através de um certo media. Por isso, soa-me como um contra-senso usar máquinas para tentar replicar algo que advém de um campo onde prima a emoção, os sentimentos.



ARQUIVO
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Na edição 169 falámos com
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A outra dimensão da conversa com Tommi Musturi (edição 167)...

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