ARGUMENTO
Cinecomix:
Entrevista a Neil Gaiman
Entrevista a Neil Gaiman
Cinecomix:
Entrevista a Neil Gaiman
Entrevista a Neil Gaiman
Cine-kosmos, por Edgar Pêra
Texto publicado no ARGUMENTO 174
Dezembro 2022
Produção Bando À Parte.
Estreia no Canal 180 em 2023.
NEIL GAIMAN: Eu acho que isso se aplica a tudo o que escrevo. Até em Miracle Man, a BD que herdei do Alan Moore. Ele deu-me uma utopia e a minha reacção imediata foi: “Bom, isto não vai durar, porque está cheio de seres humanos, e os seres humanos… somos imperfeitos. Mas isso é a tua força e a tua alegria. Um mundo de gente perfeita seria como um formigueiro, sabes? Eu adoro as nossa imperfeições, que são o que nos torna naquilo que somos. De forma que, enquanto tiveres pessoas, tens histórias.
Tu
não usas a mesma estratégia que encontro, por exemplo, em Grant
Morrison ou mesmo em Alan Moore. Tu tentas ser clássico, certo?
O
Grant é um iconoclasta, eu sou provavelmente um classicista. O Moore
é um génio! E só há um Alan Moore. Sim, acho que sou
provavelmente um classicista. Acho que sou um classicista de muitas
formas. Não estou a desfazer coisas, não sou
do tipo de deitar abaixo. Sou mais do género de ver velhas histórias
com um novo olhar e contá-las como se fosse a primeira vez.
Sabes,
quando queria oferecer comics a uma rapariga,
que achava que a
ia convencer que a banda desenhada não era só para rapazes, eu dava
a umas Love
and Rockets e a outras Sandman,
dependendo da personalidade de cada uma.
Sim,
dependendo se tinha um estilo punk ou usava demasiada
maquilhagem. Punk ou poética [ri-se]...
É mais uma questão de sensibilidade.
Claro.
O que eu quero dizer é que,
se as raparigas pensam que a banda desenhada não é
para elas,
elas identificam-se com a Maggie e a Hopey e a Luba… Seria
a história delas, e acho que iam amar ler Sandman.
Umas iriam gostar mais das personagens femininas e outras das
masculinas, mas de uma coisa todas
gostam de
certeza:
o facto de as mulheres em Sandman não serem homens com melões atados ao peito.
[...] os seres humanos…somos imperfeitos. Mas isso é a tua força e a tua alegria. Um mundo no qual…um mundo de gente perfeita seria como um formigueiro sabes? Eu adoro as nossa imperfeiçoes, que são os que nos torna naquilo que somos. De forma que, enquanto tiveres pessoas, tens histórias.
No momento em que os donos das livrarias de BD esticavam a mão e diziam: “Meu, tenho que te agradecer: tu trouxeste mulheres para a minha livraria”. Foi o mesmo que se passou nas sessões de autógrafos. No início só apareciam rapazes. E então reparo que começam a aparecer algumas mulheres, e o que aconteceu foi que a partir daí o Sandman começou a ser transmitido sexualmente. Os rapazes liam e davam a ler às namoradas. A namorada dizia: “Não gosto de banda desenhada, nem de coisas de terror, deixa-me em paz”, e eles diziam: “Não, não, tens mesmo que ler”. E as raparigas leram e adoraram. Entretanto elas acabavam com os namorados e levavam o Sandman com elas, e davam-no a ler aos namorados seguintes, e diziam-lhes: “Tens que ler isto, é banda desenhada, e é fantástica”. E bem… sabes o que aconteceu? Gradualmente, como a gonorreia ou a clamídia, comecei a conquistar o mundo. Um livro de cada vez. E provavelmente na altura em que cheguei ao Season of Mists já era 50/50, entre rapazes e raparigas. E mesmo hoje, viste na minha sessão de autógrafos lá em baixo, era 50/50, diria.
E
o que achas que é mais apelativo para uma sensibilidade feminina?
Muito
honestamente, no
que diz respeito às mulheres, acho
que tudo o que tens que fazer é não escrever coisas ofensivas e
estúpidas, que qualquer pessoa em posse das suas faculdades mentais
rejeitaria, quanto mais as mulheres. Sabes… bandas desenhadas com
mulheres com mamas gigantescas pendulantes que passam a maior parte
do tempo em poses que o artista de certeza foi buscar a revistas
pornográficas e tenta melhorar à medida que avança... olhas para
essas coisas e dizes: “Por favor...” E o outro tipo de banda
desenhada onde as mulheres não fazem nada mas acabam sempre
amarradas por uns homens e libertadas por outros. Por que razão
quereria uma mulher ler essas coisas? Se as mulheres forem pessoas e
as pessoas forem pessoas, aí tudo correrá bem. Acho que são só as
pessoas. Não acredito que haja objectos para os quais possas apontar
e dizer: “Isto
é uma coisa para mulheres e outra
para homens”,
porque eu acho que se tentares ir nessa direcção podes estar
enganado. Pode servir para vender revistas, mas não serve para mais
nada. Mas, a minha satisfação com Coraline é que é um livro em que o herói é uma heroína e a personagem
principal, e os homens também os lêem.
Há esta ideia generalizada de que os rapazes não lêem
livros com raparigas nos principais papéis…
só que
eles lêem.
Tu
não fazes as coisas para parecerem “soft”, torna-las mais
humanas, ou seja, aproxima-se novamente ao teatro, porque os teus
personagens
são
verdadeiros actores. Concordas?
Completamente,
são o meu “cast”, os meus actores. Poderemos estar a falar de
uma situação ficcional, mas eu pago-lhes. [sorri]
Sempre adorei a banda desenhada e sempre
a vi como
um meio com potencial. Sempre adorei a BD como medium.
Mas o que a maioria das pessoas não entende é que a banda desenhada
é um medium
e não um género. Quando as pessoas dizem
que é uma
coisa para crianças ou algo de género,
eu não
concordo. A banda desenhada é…
o copo,
não a água. Podes deitar o que quer que seja lá dentro. Mas, se
estás a perguntar se eu ainda gosto de literatura infantil ou se
sempre gostei dessa literatura, então sim. Adoro literatura para
crianças. Eu acho que é porque há uma honestidade que é exigida
na boa literatura infantil. As crianças sabem quando lhes estamos a
mentir e não gostam, não brincam. Mas se lhes contares coisas
verdadeiras, então entram no jogo.
Quer
dizer, passei tanto tempo da minha vida a tentar criar num gueto... A
imprensa e académicos a tentar tirar-me do fosso, a dizerem-me:
“Não, não, não, isto é literatura, é realmente”.
Eu prefiro…
olha aqui,
tenho aqui a pilha dos teus Sandman,
é uma revista de BD e é descartável. Para
mim, essa é a satisfação.
No que diz
respeito às mulheres, tudo o que tens que fazer é não escrever
coisas ofensivas e estúpidas, que qualquer pessoa em posse das suas
faculdades mentais rejeitaria. Sabes…
bandas desenhadas com mulheres com mamas gigantescas
pendulantes que passam a maior parte do tempo em poses que o artista
de certeza foi buscar a revistas pornográficas... olhas para essas coisas e dizes: “Por
favor...”
Eu adoro ter que fazer todas estas bandas desenhadas descartáveis. É muito cool. E foram os académicos e os jornais que disseram: “Olhem, olhem, olhem, Sandman é algo muito especial, porque é Literatura”. Acho tão mais simples escrever o que queres e deixar que o mundo chegue lá. Eu não acho que as histórias tenham morrido. Por exemplo, olha para Portugal: olha para Lisboa, está repleta de histórias, de histórias muito antigas e estranhas. Quer dizer… ainda é o sítio onde os Romanos estiveram, e depois os mouros… e ainda é o sítio que os cristãos tomaram aos mouros. E eu pergunto, e continuo a perguntar aos meus amigos portugueses, se há alguma ficção científica portuguesa sobre o que teria acontecido se os cristãos não tivessem tomado a cidade, o que teria acontecido se Lisboa tivesse continuado mourisca? Eu gosto de pensar que teria sido o momento fundacional, a chave para um Ocidente islâmico. E também acho que as coisas imaginárias são tão importantes quanto as coisas reais. O que é o proprietário de um terreno? Ninguém é dono de um bocado de terra. É um bocado de terra. Eu acho que os deuses deste mundo são os deuses do petróleo e os deuses da alta finança. Os deuses de fazer dinheiro. Quando estava a escrever Sandman, fui acusado de ser apolítico. Alguns escritores ingleses queixaram-se de que todos os escritores ingleses eram políticos excepto o Neil Gaiman. “Ele não tem uma postura política”. E agora, passados dez anos desde que escrevi a minha história Ramadam, sobre Bagdad e o sonho em Bagdad e aquilo em que Bagdad se transformou... Agora (2003) o livro é mencionado nos jornais em todo o mundo e é mencionado como um exemplo de… tudo o que se está a passar agora.
Sobre o que é essa peça para vozes?
Uma delas é a minha versão da Branca de Neve, que se chama Snow, Glass, Apples, e a outra chama-se Murder Mysteries, que é a história de um anjo que nos conta a história do primeiro assassinato de todos. No Céu, antes da queda. As duas peças para voz são divertidas. Ambas partem de contos meus que adaptei para serem ouvidos. E o prazer que tenho em escrever peças para voz… é como fazer filmes mas é muito mais imediato. Queres parar para mudar a fita?
[...] foram os académicos e os jornais que disseram; “olhem, olhem,
olhem, Sandman… é algo muito especial, porque é Literatura.”
Mas ao mesmo tempo, em Signal to Noise, o realizador era fundamentalmente o (artista) Dave McKean. Mas foi o Dave que insistiu que eu falasse sobre cinema em Signal to Noise. E eu era o único que queria falar de História. Que queria falar sobre o Armagedom. O Dave queria falar da morte de um realizador de cinema e juntámos as duas histórias. Eu adoro escrever para ele. Foi divertido escrever este personagem que tem uns pós de Tarkovsky, um pouco de Eisenstein, um bocadinho de Jodorowsky… talvez um pouco de Greenaway. São todos mavericks, cineastas rebeldes. Signal to Noise é, provavelmente, uma história contemporânea convencional. É o mais próximo do mainstream a que alguma vez cheguei. Mas também não gosto das suas regras. Isso quer dizer que, se estiveres a escrever ficção contemporânea, não te deixam pôr lá o que quer que seja que tenhas imaginado. Se, por exemplo, estivesse a escrever um livro e não me permitissem pôr lá Deus, se não pudesse pôr um fantasma, se eu quisesse, ou um morto a voltar à vida, ou algo assim, acho que seria um livro muito pobrezinho, porque, quando me sento com a minha caneta, eu sou Deus. Posso fazer tudo o que quiser. Eu escrevo as palavras. E por que razão quereria limitar-me a imaginar o que vejo nas ruas de Lisboa, neste momento? Quando eu consigo ir tão além disso na minha imaginação...
As pessoas da nossa geração sempre quiseram ser estrelas de rock, não achas?
Acho que sim. Mas pelo menos a nossa geração nunca quis estar em "boy-bands"! Podemos pelo menos dizer isso... Para mim, a alegria de ser da minha geração foi ter dezasseis anos em 1976, quinze anos quase a fazer dezasseis, o que significa que o movimento punk inglês estava a acontecer e eu estava mesmo na idade certa para isso. O que para mim foi tanto sobre o ethos punk como a música em si. A base do ethos punk como eu a percebia era... Não tens de fazer nada primeiro... Se queres escrever… tu escreves. Queres ter uma banda de rock, ok, com guitarras, bateria, baixo, microfone, umas colunas… e o resto vais descobrindo. Eu gosto disso!
Vais inventando, ao longo do tempo. E isso para mim foi tão importante. E ainda é algo em que eu acredito. Sabes, tu queres ser… quer dizer, eu fico muito baralhado com as pessoas que dizem: “Quero ser um escritor ou escritora, que conselhos é que podes dar-me?” Eu respondo: “Bom, escreve”. E eles dizem: “Não, não, não, a sério, o que é que nos aconselhas?” E eu digo: “Escreve e acaba as coisas. Sabem, o que é mais difícil é acabar as coisas, mas atirem-se a isso, têm uma data de porcaria para escrever antes e escrevam. É assim que nos tornamos escritores”. Mas eles querem saber se tens que te despir à meia-noite e deitar os ossos da cabra, ou algo assim, para se tornarem escritores. Não! É só a escrever que o fazes. ︎
Tradução Luísa Ramos
Kolaboração João Mora, Ana Soares