ARGUMENTO

Paul Thomas Anderson e Thom Yorke encantam com filme sublime e hipnótico


︎︎︎ Dossier “Futuros do Cinema”




por Pedro Barriga
Natural de Lisboa, formou-se em Economia na Nova SBE. Aliou a estatística à paixão pelo cinema na sua tese de mestrado “The Big Four: discrete choice modelling to predict the four major Oscar Categories”. Escreve frequentemente para os sites Cinema Sétima Arte e Comunidade Cultura e Arte.



ANIMA (Paul Thomas Anderson, 2019)
O dia era 27 de Julho de 2019. Thom Yorke, vocalista e guitarrista da banda de rock britânica Radiohead, lançara um novo álbum intitulado Anima. Horas antes, fora exibida em salas de cinema um pouco por todo o mundo – Glasgow, Chicago, Moscovo, Dubai, Lisboa – uma curta-metragem homónima, realizada por Paul Thomas Anderson (P.T.A.). Infelizmente, foi evento de uma só noite. Felizmente, quem não teve a oportunidade de ver Anima no grande ecrã pode vê-lo em streaming na Netflix.

Não é a primeira vez que o lançamento de um álbum é acompanhado por uma curta-metragem a funcionar como videoclipe de maior duração. O que distingue esta das restantes é a participação de P.T.A., que eleva o produto final a cinema do mais alto nível. Realizador de obras-primas como Magnolia (1999) e Haverá Sangue (2007), P.T.A. é possivelmente o maior cineasta norte-americano da actualidade. É sua a honra de ser a única pessoa a vencer o prémio de melhor realizador em cada um dos três maiores festivais de cinema do mundo: Cannes, Berlim e Veneza. É obra.

O mundo da música não é estranho a P.T.A. São vários os artistas para os quais já filmou videoclipes, incluindo Fiona Apple, HAIM e os ditos Radiohead. Em 2016 dirigiu três videoclipes por ocasião de A Moon Shaped Pool, o mais recente álbum dos britânicos. Também os membros da banda ajudam P.T.A. nos seus projectos de cinema: desde 2007 que Jonny Greenwood, teclista e guitarrista principal, compõe a banda sonora para todos os seus filmes, incluindo o documentário de 2015 Junun.

Desta feita, P.T.A., inspirado no terceiro álbum a solo de Yorke, presenteia-nos com um filme, que é também um vídeo musical, que é também um bailado. O cenário é um futuro próximo, no qual estar a dormir e estar acordado não são mais dois estados opostos – a tecnologia foi turvando a linha que os separava. Numa carruagem de metro, observamos os passageiros na rotina matinal a caminho do emprego. Encontram-se quase adormecidos nos assentos, num estado sonâmbulo. As suas fardas são desprovidas de cor. O filme centrar-se-á em dois passageiros, interpretados por Thom Yorke e Dajana Roncione, actriz italiana e parceira de Yorke na vida real.

Frequentemente, nas suas canções, Yorke aborda o presente e o passado, oprimido pelo primeiro e nostálgico do segundo. A ideia de reaver o que se perdeu com o passar do tempo está sempre presente. É portanto mais do que adequado que a trama do filme seja uma história de perdidos e achados: Roncione esquece-se da lancheira na carruagem e é Yorke que a encontra. O que se segue são as peripécias do músico numa tentativa de devolver a mala à sua dona.

Thom Yorke
O desempenho de Yorke é impressionante. Alinha em tudo: na dança, na representação, na comédia, na teatralidade. Quanto à dança, Yorke é surpreendentemente capaz de acompanhar os bailarinos profissionais em cena consigo. Quanto à representação, não só dá conta do recado, como poder-se-ia mesmo dizer que é um actor nato. Os seus movimentos exagerados e expressões cómicas denotam uma certa naturalidade na arte de representar. Por vezes assemelha-se a um actor de cinema mudo, sugerindo Charlie Chaplin em Tempos Modernos (1936), também este um filme sobre a depressão da vida moderna.

Anima é composto por três actos, cada um ao som de uma canção do novo álbum de Yorke. Em “Not the News”, o nosso personagem percorre corredores monumentais, envoltos em desenfreadas projecções luminosas da autoria do artista audiovisual Tarik Barri. Em “Dawn Chorus”, o acto mais íntimo e terno, Yorke e Roncione passeiam por vários pontos da bela cidade de Praga. Ao som de “Traffic”, P.T.A. proporciona-nos a sequência mais memorável do filme, de longe. Aqui a acção decorre num plano inclinado, onde Yorke se bate por alcançar a lancheira. É um segmento inventivo que prima pela música, a coreografia de Damien Jalet, os visuais, as sombras, as cores, os planos. Faz-nos lembrar a beleza de outros filmes de P.T.A., como Linha Fantasma (2017) ou The Master – O Mentor (2012).

A fotografia em película de Darius Khondji, cinematógrafo de filmes como Seven – 7 Pecados Mortais (David Fincher, 1995) e Amor (Michael Haneke, 2012), não pode ficar por mencionar. Para além das assombrosas imagens em 35mm que cria com as projecções de Barri como pano de fundo, Khondji recorre com grande efeito ao uso da cor. Ao longo do filme, a temperatura da imagem vai ficando progressivamente mais quente. O que começa com tons frios e austeros (como as cenas na linha de metro ou os corredores sombrios que Yorke atravessa) passa depois para grandes contrastes de preto e branco durante a sequência do plano inclinado, para emergir nos vários tons amarelos que caracterizam a terceira e última secção do filme. Nesta, é de destacar uma belíssima cena em que as personagens correm em direcção a um nevoeiro amarelado.

Que Anima seja uma produção tão colossal é espantoso. Um mero videoclipe jamais conseguiria reunir tanto talento e tantos meios, desde a fotografia em película de Khondji aos bailarinos profissionais sob a direcção de Jalet; desde a arte de Barri à rodagem em Praga.

Anima reúne dois génios: um do cinema, outro da música. Reúne-os num projecto que aventura o primeiro pelo mundo da música e o segundo pelo mundo do cinema. O resultado é um espectáculo visual de sonho, um filme que nos enfeitiça com música, dança e fotografia. Curioso pensar que um videoclipe tão escassamente exibido em sala e distribuído por uma plataforma de streaming seja exemplo do melhor cinema que 2019 nos trouxe. Mudam-se os tempos, mas a vontade por cinema mantém-se.

 


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