O que me move neste filme é a quietude de tudo aquilo. No subsolo, como lava, gente inquieta, ou talvez não, gente inconformada, com certeza que sim.
Tem uma história triste, a origem desta obra, mas solar, no seu seguimento.
Tanta gente, Mariana, aquela que com grande grau de evidência é das maiores novelas da literatura portuguesa do século XX, teve os seus direitos adquiridos aos herdeiros da sua autora, marido e filha de ambos — Urbano Tavares Rodrigues e Isabel Fraga —, e projecto a concurso no ICA. Não obteve apoio. Não importa se o dinheiro era curto (é sempre) e o número de projectos a apoiar diminuto (até por de mais), nem sequer a posição em que ficou, que desconheço. Travo amargo na boca.
O que parece ter interessado a Marta Pessoa na obra de Maria Judite de Carvalho, como na de Irene Lisboa2, tão esquecida quanto a primeira embora mais martirizada em vida do que ela foi, resume-se a um estilo e a um jeito — o da crónica da observação do quotidiano. Olhar, registar. Contar. Histórias de gente simples, quantas vezes anónima de facto, que retratem seres singulares que sejam tipos colectivos, no sentido de ‘sociais’. Sensibilidade, a que é necessária para ver, domínio, do ritmo do conto curto, sagacidade, na descoberta de temperamentos, perspicácia, punhal para denunciar ou simplesmente para descrever.
Assim, Marta Pessoa lê e vai escrevendo, textos, anotações, frases, ideias, de carácter pessoal, literário ou proto-literário, e todas aquelas páginas começam a pesar-lhe no bolso. Voltar atrás para quê? Se abandonada a adaptação, por falta de recursos, por que não uma nova ideia, uma nova vontade? Entregue a “papelada” à argumentista Rita Palma, sua companheira na produtora Três Vinténs, o que fazer com ela? Talvez isto: um filme dedicado à obra e às figuras dessas duas escritoras para, a partir delas, com elas e para além delas, revisitar o passado, exercitar a memória e compreender melhor o presente a partir desse ‘pas de deux’.
Sete anos andei na guerra
E fiz de filho varão.
Ninguém me conheceu nunca
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra coisa não.
São os olhos, nesta recolha de Almeida Garrett, que nos fazem conhecer e, por isso, traçam o destino. A “Donzela que vai à guerra”1, como Joana d’Arc, traveste-se para ser guerreira. Tal como as mulheres, a Mulher, nos idos dos anos 50, em pleno fascismo, retrógrado, conservador, machista e marialva? Não propriamente. A tese deste filme de Marta Pessoa, se alguma, é a de que a par de um certo tipo, acomodado, humilde e inseguro, se construía, sobre ele, um outro, de mulheres que se afirmavam pela negação — ou pela devoção ao que não queriam ser.
E fiz de filho varão.
Ninguém me conheceu nunca
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra coisa não.
Tem uma história triste, a origem desta obra, mas solar, no seu seguimento.
Tanta gente, Mariana, aquela que com grande grau de evidência é das maiores novelas da literatura portuguesa do século XX, teve os seus direitos adquiridos aos herdeiros da sua autora, marido e filha de ambos — Urbano Tavares Rodrigues e Isabel Fraga —, e projecto a concurso no ICA. Não obteve apoio. Não importa se o dinheiro era curto (é sempre) e o número de projectos a apoiar diminuto (até por de mais), nem sequer a posição em que ficou, que desconheço. Travo amargo na boca.
O que parece ter interessado a Marta Pessoa na obra de Maria Judite de Carvalho, como na de Irene Lisboa2, tão esquecida quanto a primeira embora mais martirizada em vida do que ela foi, resume-se a um estilo e a um jeito — o da crónica da observação do quotidiano. Olhar, registar. Contar. Histórias de gente simples, quantas vezes anónima de facto, que retratem seres singulares que sejam tipos colectivos, no sentido de ‘sociais’. Sensibilidade, a que é necessária para ver, domínio, do ritmo do conto curto, sagacidade, na descoberta de temperamentos, perspicácia, punhal para denunciar ou simplesmente para descrever.
Assim, Marta Pessoa lê e vai escrevendo, textos, anotações, frases, ideias, de carácter pessoal, literário ou proto-literário, e todas aquelas páginas começam a pesar-lhe no bolso. Voltar atrás para quê? Se abandonada a adaptação, por falta de recursos, por que não uma nova ideia, uma nova vontade? Entregue a “papelada” à argumentista Rita Palma, sua companheira na produtora Três Vinténs, o que fazer com ela? Talvez isto: um filme dedicado à obra e às figuras dessas duas escritoras para, a partir delas, com elas e para além delas, revisitar o passado, exercitar a memória e compreender melhor o presente a partir desse ‘pas de deux’.

Nada de novo, num certo sentido: Lisboa Domiciliária, Quem Vai à Guerra, O Medo à Espreita (para nos atermos às obras de longa-metragem, documentais, todas elas) foram isso mesmo. O que é “solar”, como acima indicado, em Donzela Guerreira, a longa-metragem que se lhes seguiu e há pouco estreou, é que agora o dispositivo é construído (reconstituição cuidadosa de época nos figurinos, cenários e adereços de todo o tipo, recurso a arquivos fotográficos e fílmicos3), multifacetado (não se centra numa personagem mas fá-la foco de irradiação para percorrer uma sociedade e uma época) e complexo (porque é tessitura cerzida de múltiplos materiais, planos como naturezas-mortas, ou seja, pulsantes de vida implícita). Dos velhinhos e das velhinhas que moram naqueles apartamentos que diríamos sem vida, das mulheres, viúvas ou enfermeiras que acompanharam militares na guerra colonial e os viram ficar sem vida, literal ou metaforicamente falando, dos homens e das mulheres que viveram em luta contra o regime e disso fizeram a vida de todos nós, ficámos a conhecer uma estratégia — observador não participante — e um resultado — desfiar de memórias, confidências consentidas, amarguras reveladas. São-no sobre uma época que, assim, aprendemos ou recordamos. Sem testemunhos não há História. Mas sem quem a reconstrua a História correria o risco de se perder por ausência de protagonistas directos. O que Marta Pessoa fez, neste seu original filme que escolhi para pensar, mistura de registo documental e de ficção, foi resgatar mulheres de carne e osso a partir de letras, espelhos, silêncios, olhares e vozes. E mãos4.
“Levei anos — quantos? — a querer fugir duma solidão que me aterrorizava só de pensar nela, passei o tempo a acreditar nas pessoas e logo a deixá-las tombar das minhas mãos abertas.5”
Provavelmente não por acaso, o filme inicia-se com um grande plano de mãos abertas, repousadas nas suas costas; descansadas, oferecidas, desistentes? Ou meramente quietas? ‘Mãos quietas’, título e capa do livro da Emília Monforte, protagonista desta história, em contraposição com as irrequietas daquelas que seguem a cartilha dos papéis tradicionais, muito laboriosas e incansáveis nas múltiplas tarefas que delas são esperadas. Mãos quietas cujo único movimento com significado é o de martelar nas teclas da máquina de escrever, e assim fazer o mundo ser, e voar. As mãos são olhos e, na pessoa certa, transformam-se em olhares. Como as de uma resistente por ser Outra face àquilo que o fascismo urgia das mulheres, sopeiras ou donas de casa — discrição, submissão, apagamento, desaparecimento. Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.
Coisas algumas, contudo:
1. Maior atenção aos interlocutores e aos espaços onde habita Emília do que a si mesma enquanto corpo e rosto. Daí o recurso a tantas imagens espelhadas dela, como se nos fosse verdadeiramente impossível fazer caber aquela pessoa cuja verdadeira identidade e cujo real sentir se dão, indirectamente, através do que escreve e diz, mais do que directamente surge e é mostrado.
2. Vários níveis de realidade sonora: a da sonoplastia em geral (barulhos da cidade de Lisboa, onde a acção decorre), a da banda sonora (particularmente feliz a escolha da canção de Tony de Matos6), a da locução directa (da entrevistadora radiofónica, da criada Etelvina…), a da voz-off persistente em todo o filme (da protagonista) cujo maior poder é tomar a função de uma verdadeira voice-over omnisciente, por conduzir uma narrativa de que só ela sabe o princípio, o meio e o fim. Logo, Emília é uma voz projectada na sombra, o que adensa o seu encanto e reforça a metáfora em que se inscreve, a da coerência face ao rumo de independência subterrânea que escolheu.
3. A par dos olhares que estes sons nos dão, os que se passam no “Estúdio Aurélio”7, à Praça do Chile, fotografando as criadas da pensão onde Emília está hospedada, e ela mesma. As primeiras, sendo quatro, com duas fotos cada uma com quase imperceptíveis diferenças de expressão entre si, constituem um tratado psicológico da mulher no Estado Novo: arredia, desconfiada, triste, ilusoriamente provocatória. Emília, essa, surge primeiramente de pernas para o ar — das mãos quietas à voz na sombra à imagem invertida. A emancipada, olhar irónico em ambas as provas.
Cheia de muito, portanto:
Das mãos abertas tombando pessoas — seja o Luís de Tanta Gente, Mariana como o de Donzela Guerreira, sejam todos aqueles em que não mais podemos acreditar —, “Cada um de nós é um ilhéu — ilhotas flutuantes em mares profundos e larguíssimos de solidão. De abandono.8” Emília Monforte, resistente, coerente, emancipada, lenço verde-claro na cabeça, caminhando em direcção ao Tejo, sustendo o passo à beira da água, olhando o rio. As colunas enquadram-na. E nós com elas, enquanto o «narrador-salvador» não chega nem tudo o mais que ficou por dizer de filme tão fantástico assim.
1. In Romanceiro, de Almeida Garrett (1851).
2. Homenageadas por dedicatória no final do filme e pela inclusão, num plano, de exemplares de primeiras edições de Esta Cidade!, de Irene Lisboa (1942) e de Tanta Gente, Mariana, de Maria Judite de Carvalho (1959).
3. Arquivos fotográficos da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação Gulbenkian, e arquivo cinematográfico do ANIM.
4. Além de três actrizes de eleição, Dina Félix da Costa, Joana Bárcia e, em particular, Anabela Brígida, a brilhar com especial fulgor no papel principal.
5. Maria Judite de Carvalho, Tanta Gente, Mariana. Obras Completas, vol. I, Edições Minotauro, 2018, p. 33.
6. “Lisboa Acordou”, do filme Os Rapazes do Táxi, de Constantino Esteves (1967).
7. Uma “private joke”, dado que o director de fotografia do filme é Aurélio Vasques.
8. Irene Lisboa, O Pouco e o Muito — crónica urbana, Editorial Presença, 1997, p. 221.
“Levei anos — quantos? — a querer fugir duma solidão que me aterrorizava só de pensar nela, passei o tempo a acreditar nas pessoas e logo a deixá-las tombar das minhas mãos abertas.5”
Provavelmente não por acaso, o filme inicia-se com um grande plano de mãos abertas, repousadas nas suas costas; descansadas, oferecidas, desistentes? Ou meramente quietas? ‘Mãos quietas’, título e capa do livro da Emília Monforte, protagonista desta história, em contraposição com as irrequietas daquelas que seguem a cartilha dos papéis tradicionais, muito laboriosas e incansáveis nas múltiplas tarefas que delas são esperadas. Mãos quietas cujo único movimento com significado é o de martelar nas teclas da máquina de escrever, e assim fazer o mundo ser, e voar. As mãos são olhos e, na pessoa certa, transformam-se em olhares. Como as de uma resistente por ser Outra face àquilo que o fascismo urgia das mulheres, sopeiras ou donas de casa — discrição, submissão, apagamento, desaparecimento. Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.
Coisas algumas, contudo:
1. Maior atenção aos interlocutores e aos espaços onde habita Emília do que a si mesma enquanto corpo e rosto. Daí o recurso a tantas imagens espelhadas dela, como se nos fosse verdadeiramente impossível fazer caber aquela pessoa cuja verdadeira identidade e cujo real sentir se dão, indirectamente, através do que escreve e diz, mais do que directamente surge e é mostrado.
2. Vários níveis de realidade sonora: a da sonoplastia em geral (barulhos da cidade de Lisboa, onde a acção decorre), a da banda sonora (particularmente feliz a escolha da canção de Tony de Matos6), a da locução directa (da entrevistadora radiofónica, da criada Etelvina…), a da voz-off persistente em todo o filme (da protagonista) cujo maior poder é tomar a função de uma verdadeira voice-over omnisciente, por conduzir uma narrativa de que só ela sabe o princípio, o meio e o fim. Logo, Emília é uma voz projectada na sombra, o que adensa o seu encanto e reforça a metáfora em que se inscreve, a da coerência face ao rumo de independência subterrânea que escolheu.
3. A par dos olhares que estes sons nos dão, os que se passam no “Estúdio Aurélio”7, à Praça do Chile, fotografando as criadas da pensão onde Emília está hospedada, e ela mesma. As primeiras, sendo quatro, com duas fotos cada uma com quase imperceptíveis diferenças de expressão entre si, constituem um tratado psicológico da mulher no Estado Novo: arredia, desconfiada, triste, ilusoriamente provocatória. Emília, essa, surge primeiramente de pernas para o ar — das mãos quietas à voz na sombra à imagem invertida. A emancipada, olhar irónico em ambas as provas.
Cheia de muito, portanto:
Das mãos abertas tombando pessoas — seja o Luís de Tanta Gente, Mariana como o de Donzela Guerreira, sejam todos aqueles em que não mais podemos acreditar —, “Cada um de nós é um ilhéu — ilhotas flutuantes em mares profundos e larguíssimos de solidão. De abandono.8” Emília Monforte, resistente, coerente, emancipada, lenço verde-claro na cabeça, caminhando em direcção ao Tejo, sustendo o passo à beira da água, olhando o rio. As colunas enquadram-na. E nós com elas, enquanto o «narrador-salvador» não chega nem tudo o mais que ficou por dizer de filme tão fantástico assim.
1. In Romanceiro, de Almeida Garrett (1851).
2. Homenageadas por dedicatória no final do filme e pela inclusão, num plano, de exemplares de primeiras edições de Esta Cidade!, de Irene Lisboa (1942) e de Tanta Gente, Mariana, de Maria Judite de Carvalho (1959).
3. Arquivos fotográficos da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação Gulbenkian, e arquivo cinematográfico do ANIM.
4. Além de três actrizes de eleição, Dina Félix da Costa, Joana Bárcia e, em particular, Anabela Brígida, a brilhar com especial fulgor no papel principal.
5. Maria Judite de Carvalho, Tanta Gente, Mariana. Obras Completas, vol. I, Edições Minotauro, 2018, p. 33.
6. “Lisboa Acordou”, do filme Os Rapazes do Táxi, de Constantino Esteves (1967).
7. Uma “private joke”, dado que o director de fotografia do filme é Aurélio Vasques.
8. Irene Lisboa, O Pouco e o Muito — crónica urbana, Editorial Presença, 1997, p. 221.