ARGUMENTO

Observatório:
Entrevista a Joana de Sá

Observatório:
Entrevista a Joana de Sá


Entrevista de Miguel R. Cardoso,
publicada no ARGUMENTO 176
Versão integral, Setembro 2023



© Mário Mar


JOANA DE SÁ AO VIVO NO FESTIVAL RESCALDO, ONDE TOCOU COM TIAGO SOUSA EM FEVEREIRO
Vem de Mortágua e defende os érres de lá. Artista visual, recém licenciada em Design de Comunicação pelas Belas Artes do Porto, foi graças à sua música que a encontrámos. Na adolescência, Joana de Sá travou intimidade com a guitarra a sacar as malhas dos Rolling Stones; chegou a fazer parte de uma banda hard rock só de raparigas; mas o espírito inquieto e as provações do confinamento da epidemia empurraram-na para a maquinaria, para as possibilidades da electrónica, para os loops, para o drone. Começou por expor as suas criações no soundcloud, idos de 2020-21, e é desde então que o seu trajecto enquanto artista do som, que a revista jazz.pt caracterizou de etéreo, despontou – em verdade, explosivamente. A aclamação e os desafios que dão prova inequívoca dos seus méritos surgiram em catadupa: um responsável pela sirr-ecords, editora renomeada internacionalmente, deu com aquelas gravações e no primeiro trimestre do ano passado pudemos confirmar a solidez do seu trabalho com o álbum Shatter; uns meses depois passou de espectadora assídua para o palco do festival viseense Jardins Efémeros, com uma memorável apresentação ao vivo no adro da Sé; o interesse no seu disco de estreia foi-se estendendo pelo país fora e, sem sequer ter tempo ou a ousadia de pensar numa digressão, deu concertos quase todos os meses, em variados locais e contextos, tendo partilhado palco com artistas como Tiago Sousa, Clothilde, ou o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa. Pelo caminho, nunca parou de compor, e apresenta-nos agora Lightwaves, que, interrompendo um longo jejum de edições físicas da sirr, saiu em CD no passado mês de Julho. Enquanto os CDs não chegavam, e mesmo estando no rescaldo da conclusão da licenciatura, não houve tempo para descanso: esperava-a a composição de uma peça em jeito de homenagem a Jorge Peixinho, na mesma semana em que tinha de preparar um espectáculo com recurso a arquivos sonoros da cidade de Coimbra para apresentar no Convento de S. Francisco.

De Shatter para Lightwaves podemos falar num salto quântico: enquanto no primeiro Joana de Sá trabalhou sobretudo com loops de guitarra e sintetizador, num registo terno e íntimo; ao segundo acrescentou gravações de campo que vão das chamadas de uma vendedora do mercado do Bolhão, às águas — e bolhas — do Douro, passando pelos ruídos industriais dos cais fluviais do Tejo, uma festa popular, a chuva, o tilintar de um espanta-espíritos, o violoncelo de um amigo e... a sua própria voz. O resultado são cinco peças de outra envergadura; colagens de uma plasticidade vibrante; música que propõe imagens, personagens e arcos narrativos.




Quando é que descobriste que eras uma artista e que a tua vida teria de passar necessariamente pela criação?
Desde muito pequena que a minha mãe (professora de Artes Visuais do ensino básico e secundário) me incutiu o desenho como meio de expressão e ocupação. A exploração e o contacto com referências visuais foram constantes no meu crescimento. Julgo ter sido nos meses finais do secundário (estudei Artes Visuais) que surgiu um particular interesse em criar, com a escolha do ramo académico que iria seguir, Design de Comunicação. Tive algumas cadeiras que exigiam muito trabalho prático, isso instigou um certo bichinho, uma certa necessidade em ter o caderno e o lápis sempre por perto. E a música e o som acompanharam-me muito nesses processos de estudo. Muitas vezes, o som era motivo de distracção; atentava mais ao que estava a ouvir e a tentar replicá-lo na guitarra, fosse por ouvido, fosse com a ajuda de vídeos da internet. A partir dessas tentativas de replicar as linhas de baixo ou guitarra que ouvia, eventualmente desembrulhava linhas pessoais, por engano ou deliberadamente. Penso que a ideia de criação partiu precisamente daí, da ideia de auto-descoberta. Não acho que a minha vida tenha “necessariamente” de passar pela criação. É, sim, um elemento que configura um espaço importantíssimo no meu tempo, na minha vida, na minha identidade e é sempre muito bom receber e perceber a legitimidade do meu trabalho quando é acolhido pelas outras pessoas.

Lembras-te momento em que deste com o Cinema?
Penso que terá sido no secundário, por influência de colegas; na altura partilhávamos muitos objectos artísticos, visuais, musicais; foi quando comecei a ter acesso ao computador, onde podia explorar e procurar novos filmes e música. Os primeiros exemplos cinematográficos a que atentei eram orientados por referências musicais. Lembro-me de um caso concreto, nessa altura da adolescência, em que ouvia muito Nick Cave. Depois de pesquisar um pouco, descobri que havia uma pequena cena em As Asas do Desejo (Wim Wenders, 1987) em que os Bad Seeds apareciam a tocar ao vivo. Um outro filme que descobri de forma semelhante foi o Easy Rider, através dos Byrds, neste caso não por aparecerem, mas pela banda sonora. Foi com estes títulos que percebi que um filme pode ser mais do que apenas um objecto de entretenimento puro, mas também de descoberta e aprendizagem.

Não acho que a minha vida tenha “necessariamente” de passar pela criação. É, sim, um elemento que configura um espaço importantíssimo no meu tempo, na minha vida, na minha identidade e é sempre muito bom receber e perceber a legitimidade do meu trabalho quando é acolhido pelas outras pessoas.







LIVRO-DISCO “GREY PATHS”, DESENVOLVIDO COMO PROJECTO FINAL DA LICENCIATURA
Música exploratória, paisagista, espacial, progressiva... não é só acústica, parece contar histórias... Encontras algum paralelismo entre o teu processo de composição e a montagem de um filme?
Diria que sim. Da mesma forma que encaro a composição [musical] como um conjunto, uma agregação de uma série de elementos documentais (que fazem parte de uma colecção pessoal, por vezes não só de material áudio, como também gráfico) dispostos e seleccionados, de forma narrada, relatada; o cinema toma, precisamente, esse trajecto de narração, assumindo por vezes apenas um papel contemplativo, mas mantendo a ideia de encadeadamento de anotações, registos ou relatos, sejam eles visuais, performativos ou sonoros. No meu processo de composição, nomeadamente neste último Lightwaves, penso ser evidente essa distribuição de elementos. À semelhança do cinema, tenho uma timeline, tenho um início e procuro uma resolução.
    De outro ponto de vista, a imagem é o elemento basilar do cinema. Ora, o termo “paisagista” caracteriza bem o que tenho feito recentemente, uma vez que tenho trabalhado com gravações de campo, que podem naturalmente evocar imagens ou memórias visuais — penso que este é outro ponto de encontro entre o meu processo de composição e a montagem de um filme.

Vês-te a fazer a banda sonora de um filme? Já foste contactada nesse sentido?

Compor uma banda sonora parece-me uma tarefa muito laboriosa, mas confesso que gostava muito de trabalhar para cinema. Dado o meu percurso académico e interesses pessoais, tento, sempre que surge oportunidade, cruzar e conciliar metodicamente vários registos e linguagens de criação, daí que não considere impossível fazê-lo. Tenho sempre disponibilidade para explorar e descortinar diferentes abordagens, e porque não no cinema? Há uma tendência do público, seja por parte de quem ouve o disco em casa ou de quem vai a um concerto ao vivo, sugerir que a minha música se enquadraria bastante bem na banda sonora de determinados filmes. É relevante dizer que numa banda sonora para um filme, devo obedecer à imagem; é necessária uma adaptação a uma timeline que não é a minha — e esse será um desafio curioso, tenho muita vontade em explorar essa vertente, até porque conto, em breve, aflorar esta relação da minha música com o cinema, isto é, trabalhar a partir das imagens de outrém.

À semelhança do cinema, tenho uma timeline, tenho um início e procuro uma resolução. De outro ponto de vista, a imagem é o elemento basilar do cinema. (...) Tenho trabalhado com gravações de campo, que podem naturalmente evocar imagens ou memórias visuais — penso que este é outro ponto de encontro entre o meu processo de composição e a montagem de um filme.

Poster para concerto dA ASSOCIAÇÃO CULTURAL Nariz Entupido

©  João Duarte


AO VIVO NO CONVENTO DE S. FRANCISCO, COIMBRA, EM JULHO
Fala-me desta escolha, Cold War, um filme com uma componente musical tão forte.
Cold War é dos meus filmes favoritos, desde a imagem, à banda sonora, à narrativa. Quando surgiu o convite para ilustrar a contracapa do Argumento, não hesitei em escolhê-lo. Cativou-me pelo enredo (da musicologia ao folclore tradicional de leste) acompanhado pela imagem a preto e branco e o singular enquadramento visual. É um filme tão delicado, subtil e simultaneamente denso, que aborda de uma forma tão nítida a relação amorosa das personagens principais, constrangida pelas situações políticas e sociológicas externas, próprias do tempo e diferentes espaços em que é narrado, numa Europa do pós-Segunda Guerra Mundial.



O RESULTADO DA COLABORAÇÃO DE JOANA DE SÁ COM O ARGUMENTO: UMA ILUSTRAÇÃO BASEADA EM “COLD WAR” DE PAWEL PAWLIKOWSKI DE 2018, EM JEITO DE "PAUTA GRÁFICA"
Como chegaste a este resultado?
Tentei adaptar a ilustração a uma ideia de composição [musical], de score, através do recorte e colagem de elementos e motivos do filme, conciliando-os com registos pessoais que pudessem representar o enredo e aura deste Cold War. As pautas gráficas têm-me fascinado muito ultimamente — definir uma timeline no papel, onde posso representar sons mais ou menos densos, seja através do traço, do conteúdo ou do contraste de uma fotografia, ou até de palavras. Muitas vezes represento o som a que quero chegar (ou replicar) com onomatopeias ou exemplos concretos de ideias ou excertos de outros artistas e músicos que me tenham chamado à atenção. É comum preencher cadernos e cadernos com esses desenhos. Posso nomear alguns artistas que me inspiraram a fazê-lo: Joseph Beuys ou John Cage. Mas não tenho uma forma fechada de o fazer, nem estou presa a determinadas referências, estou atenta a todo o tipo de abordagens de representação e interpretação. Ultimamente gosto de ir buscar material gráfico a arquivos jornalísticos e a livros. A ideia é brincar com palavras e frases já feitas, apagando, desconstruindo-as e colocando-as noutro papel, com outra leitura.

As pautas gráficas têm-me fascinado muito ultimamente — definir uma timeline no papel, onde posso representar sons mais ou menos densos, seja através do traço, do conteúdo ou do contraste de uma fotografia, ou até de palavras. Muitas vezes represento o som a que quero chegar (ou replicar) com onomatopeias ou exemplos concretos de ideias ou excertos de outros artistas e músicos que me tenham chamado à atenção.

Em alguns dos teus trabalhos fotográficos (como a capa de Shatter), quase sempre imagens analógicas a preto-e-branco, depreendo que a captação de “movimento” ou “impermanência” é uma ideia que te interessa. Já pensaste em filmar?
É algo que gostaria muito de fazer, tendo já experimentado, na vida académica, tanto filmar, como explorar o foley/bandas sonoras. Gosto muito de trabalhar com fotografia e imagem, faço-o por mero prazer pessoal. Talvez um dia, caso surja oportunidade, possa dedicar algum tempo a isso. Julgo que o “movimento” e “impermanência” são elementos despropositadamente muito presentes naquilo que tenho feito ultimamente. Acho que é possível questionar a constância, monotonia, o significado do tempo, da sua passagem, quer no suster mais ou menos denso de uma nota, tenha ou não breves nuances harmónicas, quer no arrastamento de uma fotografia ou na intensidade do traço. Não acho que esse seja o propósito ou motivo fundamental para a minha criação, no entanto, não deixa de ser relevante na minha prática artística.

Com a devida atenção, podemos encontrar Viseu e Beira Alta na tua música. Tens planos de vir a trabalhar com aspectos sonoros da região?

Tenciono trabalhar na e sobre a região da Beira Alta. É uma zona com enorme potencial cultural, desde a sua riqueza arqueológica à etnografia local/rural. Tenho desde pequena um interesse especial por pedras, por megalitismo e por arquivo histórico. Parece-me que documentar e distribuir registos deste tipo de objectos via áudio, em jeito de composição, pode ser uma forma de aliar vários interesses pessoais, bem como valorizar aspectos da região como o seu tão valioso património.

A rapidez com que a tua carreira se tem vindo a afirmar é surpreendente, sobretudo se pensarmos que a tua música não é comercial, muito pelo contrário, nem foi este o foco do teu percurso académico, para não falar de que não deves ter muitos colegas na mesma situação. Como se gere tudo isto?
Dadas as circunstâncias, ocupações e deveres pessoais ao longo dos últimos meses, enquanto estudante-trabalhadora e artista, as deslocações entre várias cidades foram frequentes. Não foi tarefa fácil gerir tudo, mas julgo ter sido um percurso com uma influência significativa no meu método de trabalho. Creio que todas estas tarefas, tão variadas, se acabaram por encadear bastante bem; esta gestão permitiu-me sustentar várias exigências pessoais: explorar, aprender e experimentar. Por vezes uma coisa sustentava a outra. Por exemplo, estando a trabalhar no Coliseu do Porto e a estudar na zona do Bonfim, o caminho que fazia pelas zonas do Bolhão, Trindade e Santa Catarina era quase diário. Há muitos sons do disco Lightwaves que foram gravados nestes trajectos cíclicos, uns mais regulares do que outros.

JOANA DE SÁ, 2023

Acho que é possível questionar a constância, monotonia, o significado do tempo, da sua passagem, quer no suster mais ou menos denso de uma nota, tenha ou não breves nuances harmónicas, quer no arrastamento de uma fotografia ou na intensidade do traço.

Que mais podemos esperar de ti nos próximos tempos?
Nos próximos meses planeio trabalhar num projecto de recolha e documentação áudio, em coordenação com a Câmara Municipal de Viseu (através do programa Eixo Cultura); continuar a fomentar o meu arquivo gráfico/visual pessoal; além dos vários concertos agendados, conciliando com os estudos académicos (que tenciono prosseguir com um mestrado em Museologia). Confesso que o meu interesse por objectos gráficos, por poesia visual, pela fotografia, nunca foi tão grande, daí que tencione desenhar pequenas edições físicas (zines, publicações) para partilhar futuramente. Paralelamente, tenho alguns concertos agendados para o Outono, nomeadamente, a passagem (e grande oportunidade) de tocar no Out.fest, no Barreiro. Sinto-me muito grata pelo acolhimento que o meu trabalho tem recebido, tendo eu tido possibilidade de poder passeá-lo por inúmeros pontos do país — e é isso que quero continuar a fazer.

E porque nem só de filmes vive o cinéfilo, sugeres-nos uns discos?
Ao longo dos anos, fui sendo influenciada por inúmeros artistas ou géneros musicais. Desses muitos nomes/álbuns/géneros, terei de destacar o Speak no more about the leaves, do Steve Roden, um dos meus preferidos dele. É um disco tão turvo e simultaneamente tão lúcido, cuidadoso. Ligeiramente distanciado deste género lowercase, mas igualmente etéreo, sugiro o disco From the Ocean to You pelo Emmanuel Holterbach. Tenho andado de ouvido colado na discografia da Joana Guerra há largos meses, nomeadamente o Chão Vermelho — que disco maravilhoso. Destaco, por fim, uma canção “Girly-Sound” que me apraz muito de tão pura e límpida — Shane, da Liz Phair, do disco Yo Yo Buddy Yup Yup Word to Ya Muthuh. ︎



LIGHTWAVES (SIRR-ECORDS, 2023)
O título está longe de ser gratuito, a luz parece ter sido a preocupação fundamental nas composições: os raios, as sombras, os arrastamentos, a claridade e a escuridão. Em Lightwaves, gravado entre Viseu, Porto e Lisboa, podemos mover-nos pelos lugares e estados de alma da artista.

Disponível em sirr-ecords.bandcamp.com/lightwaves



ARQUIVO
Na edição 175 falámos com o ilustrador Mantraste!
Entrevista a Neil Gaiman por Edgar Pêra (para a série Cinecomix!!!)
Viseu, 1985, o primeiro ciclo dedicado a Pier Paolo Pasolini
Entrevista a Margarita Ledo, realizadora galega de Nación
Na edição 169 falámos com
Ana Eliseu!

A outra dimensão da conversa com Tommi Musturi (edição 167)...

Na edição 166 falámos com Dartagnan Zavalla!

 


O Cine Clube de Viseu oferece a todos a oportunidade de experienciar, descobrir e aprender mais sobre o mundo do cinema, audiovisual e cultura visual.
︎ Terça a sexta, das 9h30 às 13h00 
︎ Rua Escura 62, Apartado 2102, 3500-130 Viseu
︎ (+351) 232 432 760 
︎ geral@cineclubeviseu.pt