ARGUMENTO

Novas formas de produzir e consumir cultura digital em Awesome; I Fuckin' Shot That!


︎︎︎ Dossier “Futuros do Cinema”




por André Almeida Bastos
Nascido em Viseu em 1997, desde cedo cultiva um enorme gosto pelo vasto mundo artístico, principalmente pela literatura e pelo cinema. Frequenta o terceiro ano do curso Comparative Literature with Film da Universidade de Kent, no Reino Unido. Os seus realizadores preferidos são Martin Scorecese, Alfonso Cuarón e Orson Welles.



Beastie Boys em “Awesome; I Fuckin’ Shot That”
A wesome; I Fuckin' Shot That! é talvez uma das mais interessantes experiências cinematográficas de recente memória. Podendo o título ser traduzido para “Fantástico; eu gravei isso”, os três integrantes do grupo de hip-hop Beastie Boys, Michael Diamond, Adam Horovitz e Adam Yauch, decidiram pôr em prática uma ideia relativamente simples: distribuir cinquenta câmaras a cinquenta dos seus fãs, pouco antes de um dos seus concertos, dando-lhes total liberdade para gravar o que bem entendessem, com a intenção de, posteriormente, compilar as gravações num único filme. Até aí, registos fílmicos de concertos de artistas musicais eram uma prática comum, sendo talvez o representante mais simbólico deste género o documentário Woodstockde 1970. Até ao lançamento de Awesome; I Fuckin' Shot That!, em 2006, estes filmes buscavam optimizar a experiência dos concertos, numa tentativa de os expor de uma forma clara e acessível a uma audiência cinematográfica. Awesome; I Fuckin' Shot That!  desafia estes preceitos até aí estabelecidos e procura retratar de forma mais fidedigna a real experiência de estar presente num concerto.

O filme começa nos bastidores, enquanto vemos a banda a preparar-se para o concerto, uma forma habitual de se começar filmes deste género. No entanto, quando a banda entra em palco, o modo como as imagens são captadas muda drasticamente. A nitidez das imagens é reduzida, as câmaras abanam constantemente e a duração de um shot raramente excede poucos segundos. Ao mesmo tempo, a nossa visão é frequentemente bloqueada por outros membros da audiência. Tal cria no espectador uma sensação de confusão, por não estar habituado a esta crueza em registos de concertos. O som, ou melhor dizendo, a parte musical do filme, mantém-se, no entanto, relativamente estável, com pequenas excepções, o que traz unidade a estas imagens, muitas vezes desconectadas umas das outras. Típicos filmes-concerto não operavam e continuam a não operar desta forma. Normalmente são gravados com câmaras com a mais alta resolução disponível e com um vasto número de recursos técnicos, para favorecer a performance visual dos intérpretes. Tais técnicas e recursos procuram criar nos espectadores uma ideia de experiência perfeita: noventa minutos de perfeita contemplação em que tudo corre de acordo com as nossas expectativas. Awesome; I Fuckin' Shot That!, no entanto, desafia este idealismo e procura retratar a experiência de um concerto como ela realmente é: confusa, imperfeita e afectada por outros factores que raramente são tidos em consideração quando compramos um bilhete para um concerto. Esta preferência pelo real e não pelo idílico é exposta de muitas outras formas, como quando um dos espectadores se ausenta temporariamente do concerto para ir à casa de banho e decide gravar esta experiência, ou quando alguém se afasta para comprar álcool, ou quando os mesmos espectadores decidem virar as suas câmaras para outros membros da audiência e vemos como o concerto os está a afectar. Uns dançam, outros cantam e outros acenam para nós, espectadores do filme. Tudo isto mostra que muita da experiência de assistir a um concerto é dependente, muito mais do que do palco e dos artistas, de todo o ambiente, que tem impacto na forma como o compreendemos e, consequentemente, como o interpretamos. O efeito destes factores externos é, no entanto, mais bem exposto quando, subitamente, a meio do filme, as imagens são alteradas com efeitos visuais, adicionados na pós-produção, o que parece simular a influência de drogas ou de álcool. Este consumo é prática recorrente em qualquer concerto, embora raramente seja abordado nos filmes-concerto (pelo menos de forma tão explícita). Enquanto o típico filme-concerto dá a maior parte do seu foco aos artistas no palco, Awesome; I Fuckin' Shot That! traz muito deste foco para o público, reconhecendo assim o seu papel na criação artística.

Uma questão que se pode levantar em relação a Awesome; I Fuckin' Shot That! é a da sua autoria. Se as imagens foram captadas pelos espectadores e posteriormente compiladas pela banda, quem é o verdadeiro autor deste trabalho? A resposta é que se tem que atribuir créditos a ambas as partes, pois ambas tiveram um papel essencial na criação tanto do filme quanto do concerto, mas sobretudo à banda, pois, afinal, foi exclusivamente dela a última palavra. Convém referir isto, porque, apesar de o filme se propor a expor a experiência de um concerto de uma forma mais realista, ele continua a ser um produto que foi moldado e fabricado de acordo com as intenções dos seus criadores (Beastie Boys).

Awesome; I Fuckin' Shot That! apresenta uma forma alternativa de ver os filmes-concerto, que não havia até então sido completamente explorada, e traz à luz elementos que são, muitas vezes, ignorados no mundo da música. Hoje em dia, com a abundância de meios de gravação digital (sejam telemóveis ou câmaras), é relativamente fácil encontrar vídeos de concertos que mostrem a perspectiva do público. Estes vídeos, frequentemente de qualidade visual e sonora baixa, oferecem-nos a mesma perspectiva realista anteriormente referida, e revelam o caos frequente com que o espectador tem de lidar quando decide ir a um concerto. Awesome; I Fuckin' Shot That! anteviu esta forma de encarar os concertos, e, deste modo, deve ser recordado não só como revolucionário, mas também como um precursor da união entre fãs e músicos na produção e consumo de conteúdo digital.

 


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