ARGUMENTO
Richard Peña:
O
mundo do cinema oferece um banquete, mas a grande maioria dos
americanos só quer comer no McDonald’s
Richard Peña:
O
mundo do cinema oferece um banquete, mas a grande maioria dos
americanos só quer comer no McDonald’s
Entrevista publicada no ARGUMENTO 173
Setembro 2022
É conferencista habitual em cinematecas e festivais de cinema de todo o mundo, e professor de Teoria do Cinema e Cinema Internacional na Universidade de Columbia. Richard Peña, director do NYFF/Festival de Cinema de Nova Iorque entre 1988 e 2012, orientou uma aula/sessão no contexto do curso VANGUARDAS E ESTÉTICAS NO CINEMA, organizado pelo Cine Clube de Viseu.
O reputado e influente historiador focou a renovação do cinema americano nos anos 1960-70, e de algum modo baralhou a hierarquia dos realizadores mais influentes da época ao destacar o trabalho de duas cineastas pouco conhecidas, Barbara Loden e Carolee Schneemann. Esteve à conversa com o público presente na sessão no IPDJ, em Viseu (05/03/2022), começando pelo percurso como cinéfilo e programador. E revela as razões de falar português fluentemente. «Durante a faculdade fiz estudos latino americanos, e por ter uma amiga que passou um ano no Brasil ouvi discos de Chico Buarque e Caetano Veloso. Também falava espanhol, a minha mãe era espanhola e o meu pai porto-riquenho, compreendia as letras, e decidi que seria bom estudar português. E fiquei obcecado com o Brasil, já lá fui mais de 40 vezes. Nos anos 80 conheci um pouco de Portugal, sempre através do cinema, pela obra de Manoel de Oliveira e toda a geração desses anos, João Botelho, João César Monteiro».
Porquê e como se dá o percurso no cinema alternativo?
Para podermos compreender o contexto do cinema alternativo é necessário conhecer as instituições que permitiram que este surgisse e que o apoiam. A estrutura do cinema comercial nasceu aproximadamente no ano de 1918, nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo. Nos anos 20, surgiu sobretudo em França, Alemanha e alguns outros lugares, imagino que em Portugal também, várias entidades que queriam expandir um pouco as definições do que era o cinema. Assim sendo, criaram formas de apresentar os filmes ou projecções de cinema alternativo, documentários, cinema de vanguarda, animação e eventualmente de países que não tiveram acesso ao cinema comercial.
O primeiro Festival de Cinema que surgiu, no sentido contemporâneo, foi o Festival de Veneza (1932) e de seguida apareceu uma organização no sul da França, com o nome de Festival de Cannes, que tinha por objectivo criar o seu próprio evento em 1939. A primeira edição estava programada para 2 de Setembro de 1939, mas infelizmente Hitler invadiu a Polónia no dia 1 de Setembro, provocando o cancelamento do festival até 1946. Só após esta data voltaram a realizar-se vários festivais por todo o mundo.
Por sua vez, o Festival de Nova Iorque iniciou-se em 1963, logo após a criação do Lincoln Center. A fundação do Lincoln Center tinha como principal função realizar uma renovação urbana de uma parte de Nova Iorque, que neste caso era um bairro pobre, onde havia bastante miséria. Se virem o West Side Story de 1961, foi filmado exactamente onde Lincoln Center está agora. Quando acabavam uma cena, muitas vezes derrubavam os edifícios que se veem no filme. Em 1969 foi fundado o Film Society do Lincoln Center nas ruínas do West Side Story.
O Festival de Nova Iorque começa em 1963, e devo dizer que acho que era uma coisa bastante corajosa por parte da gerência do Lincoln Center. Nesse momento, a inclusão do cinema dentro de uma meca da arte não era assim tão óbvio. Há uma história de que quando o Presidente daquela época do Lincoln Center, um compositor chamado William Schuman anunciou ao conselho da administração que ele queria fundar um festival de cinema, um dos membros do conselho, David Rockefeller, daquela tão famosa família, disse “um festival de cinema no Lincoln Center, qual é a próxima, um clube de basebol?”. Havia, até então, uma visão de que o cinema não merecia lugar, mas para mim era muito importante, como jovem criado em Nova Iorque, ver o cinema ao lado do que de melhor se fazia na Europa, na música clássica, no ballet e no teatro.
E enquanto programador de estruturas e festivais de primeira importância na cena cultural nova iorquina, como se foi definindo a sua sensibilidade e linha programática?
O Festival de Nova Iorque é um festival específico. Richard Roud e Amos Vogel, os dois primeiros fundadores e directores, tinham a visão de apresentar um festival bastante pequeno, apresentando 25 filmes em cada ano, escolhidos no mundo inteiro, sem pensar muito se o filme se abria a um grande público, nada disso, só os melhores eram seleccionados para esse ano. Essa era a política usada durante 25 anos. Amos Vogel saiu depois de 5 anos, Richard Roud continuou até 1987 e eu entrei em 1988. A política continua a mesma até hoje, o festival sempre resistiu à tendência norte-americana de se expandir a tamanhos incríveis. Por exemplo, o festival de Montreal num ano apresentou 400 filmes, é outro modelo. O Festival de Nova Iorque optou sempre por uma selecção bastante pequena, o que para mim dá mais sentido a um festival que teve curadoria de pessoas que fizeram uma selecção, não é uma enciclopédia, é uma visão bastante específica do cinema num ângulo particular.
Existem grandes shoppings e existem boutiques, e temos necessidade dos dois. Mas porque só apresentávamos um pequeno número de filmes, depois de algum tempo fomos acusados de sermos muito elitistas. Alguns realizadores voltaram muitas vezes ao festival, como o grande Manoel de Oliveira, mas nós ficámos sempre com essa política. E estou muito orgulhoso por depois da minha saída as pessoas que agora têm o festival a seu cargo manterem os mesmos princípios.
Para mim trata-se de apresentação de filmes e também de educação. A coisa mais bonita do processo de ser director do festival era apresentar algo como o cinema iraniano e vermos nos primeiros anos as salas com 40% a 50% de lotação, mas cinco anos depois os filmes iranianos eram as primeiras sessões a ser vendidas. Vimos um público que descobriu um novo cinema. Aceitou o cinema iraniano que continuou a ser um cinema respeitado, não talvez com tanta presença como antes, mas pelo menos faz parte da cultura cinematográfica e isso é sempre a nossa luta, expandir sempre a definição do que é o cinema. Às vezes faço a piada, falando do meu país, o mundo do cinema está a oferecer um banquete, mas a grande maioria dos americanos só quer comer no McDonald’s. Não sei porquê, mas recusam a riqueza que o cinema lhes oferece, não só do cinema estrangeiro, mas o próprio cinema americano.
O reputado e influente historiador focou a renovação do cinema americano nos anos 1960-70, e de algum modo baralhou a hierarquia dos realizadores mais influentes da época ao destacar o trabalho de duas cineastas pouco conhecidas, Barbara Loden e Carolee Schneemann. Esteve à conversa com o público presente na sessão no IPDJ, em Viseu (05/03/2022), começando pelo percurso como cinéfilo e programador. E revela as razões de falar português fluentemente. «Durante a faculdade fiz estudos latino americanos, e por ter uma amiga que passou um ano no Brasil ouvi discos de Chico Buarque e Caetano Veloso. Também falava espanhol, a minha mãe era espanhola e o meu pai porto-riquenho, compreendia as letras, e decidi que seria bom estudar português. E fiquei obcecado com o Brasil, já lá fui mais de 40 vezes. Nos anos 80 conheci um pouco de Portugal, sempre através do cinema, pela obra de Manoel de Oliveira e toda a geração desses anos, João Botelho, João César Monteiro».
Porquê e como se dá o percurso no cinema alternativo?
Para podermos compreender o contexto do cinema alternativo é necessário conhecer as instituições que permitiram que este surgisse e que o apoiam. A estrutura do cinema comercial nasceu aproximadamente no ano de 1918, nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo. Nos anos 20, surgiu sobretudo em França, Alemanha e alguns outros lugares, imagino que em Portugal também, várias entidades que queriam expandir um pouco as definições do que era o cinema. Assim sendo, criaram formas de apresentar os filmes ou projecções de cinema alternativo, documentários, cinema de vanguarda, animação e eventualmente de países que não tiveram acesso ao cinema comercial.
O primeiro Festival de Cinema que surgiu, no sentido contemporâneo, foi o Festival de Veneza (1932) e de seguida apareceu uma organização no sul da França, com o nome de Festival de Cannes, que tinha por objectivo criar o seu próprio evento em 1939. A primeira edição estava programada para 2 de Setembro de 1939, mas infelizmente Hitler invadiu a Polónia no dia 1 de Setembro, provocando o cancelamento do festival até 1946. Só após esta data voltaram a realizar-se vários festivais por todo o mundo.
Por sua vez, o Festival de Nova Iorque iniciou-se em 1963, logo após a criação do Lincoln Center. A fundação do Lincoln Center tinha como principal função realizar uma renovação urbana de uma parte de Nova Iorque, que neste caso era um bairro pobre, onde havia bastante miséria. Se virem o West Side Story de 1961, foi filmado exactamente onde Lincoln Center está agora. Quando acabavam uma cena, muitas vezes derrubavam os edifícios que se veem no filme. Em 1969 foi fundado o Film Society do Lincoln Center nas ruínas do West Side Story.
O Festival de Nova Iorque começa em 1963, e devo dizer que acho que era uma coisa bastante corajosa por parte da gerência do Lincoln Center. Nesse momento, a inclusão do cinema dentro de uma meca da arte não era assim tão óbvio. Há uma história de que quando o Presidente daquela época do Lincoln Center, um compositor chamado William Schuman anunciou ao conselho da administração que ele queria fundar um festival de cinema, um dos membros do conselho, David Rockefeller, daquela tão famosa família, disse “um festival de cinema no Lincoln Center, qual é a próxima, um clube de basebol?”. Havia, até então, uma visão de que o cinema não merecia lugar, mas para mim era muito importante, como jovem criado em Nova Iorque, ver o cinema ao lado do que de melhor se fazia na Europa, na música clássica, no ballet e no teatro.
E enquanto programador de estruturas e festivais de primeira importância na cena cultural nova iorquina, como se foi definindo a sua sensibilidade e linha programática?
O Festival de Nova Iorque é um festival específico. Richard Roud e Amos Vogel, os dois primeiros fundadores e directores, tinham a visão de apresentar um festival bastante pequeno, apresentando 25 filmes em cada ano, escolhidos no mundo inteiro, sem pensar muito se o filme se abria a um grande público, nada disso, só os melhores eram seleccionados para esse ano. Essa era a política usada durante 25 anos. Amos Vogel saiu depois de 5 anos, Richard Roud continuou até 1987 e eu entrei em 1988. A política continua a mesma até hoje, o festival sempre resistiu à tendência norte-americana de se expandir a tamanhos incríveis. Por exemplo, o festival de Montreal num ano apresentou 400 filmes, é outro modelo. O Festival de Nova Iorque optou sempre por uma selecção bastante pequena, o que para mim dá mais sentido a um festival que teve curadoria de pessoas que fizeram uma selecção, não é uma enciclopédia, é uma visão bastante específica do cinema num ângulo particular.
Existem grandes shoppings e existem boutiques, e temos necessidade dos dois. Mas porque só apresentávamos um pequeno número de filmes, depois de algum tempo fomos acusados de sermos muito elitistas. Alguns realizadores voltaram muitas vezes ao festival, como o grande Manoel de Oliveira, mas nós ficámos sempre com essa política. E estou muito orgulhoso por depois da minha saída as pessoas que agora têm o festival a seu cargo manterem os mesmos princípios.
Para mim trata-se de apresentação de filmes e também de educação. A coisa mais bonita do processo de ser director do festival era apresentar algo como o cinema iraniano e vermos nos primeiros anos as salas com 40% a 50% de lotação, mas cinco anos depois os filmes iranianos eram as primeiras sessões a ser vendidas. Vimos um público que descobriu um novo cinema. Aceitou o cinema iraniano que continuou a ser um cinema respeitado, não talvez com tanta presença como antes, mas pelo menos faz parte da cultura cinematográfica e isso é sempre a nossa luta, expandir sempre a definição do que é o cinema. Às vezes faço a piada, falando do meu país, o mundo do cinema está a oferecer um banquete, mas a grande maioria dos americanos só quer comer no McDonald’s. Não sei porquê, mas recusam a riqueza que o cinema lhes oferece, não só do cinema estrangeiro, mas o próprio cinema americano.
"Wanda" (Barbara Loden, 1970)
"Fuses" (Carolee Schneemann, 1967)
O
cinema veio a tornar-se, no fundo, um espaço privilegiado de
descoberta e de encontro com o outro.
Pode ser de certo modo um reflexo da minha experiência pessoal. Aos 12 anos fui pela primeira vez ao Festival de Nova Iorque para ver um filme de Erich von Stroheim. Para mim, sobretudo naquela época, ver filmes num festival e vários cinemas de repertório era uma aventura. Muitas vezes vi coisas que não entendi nada, mas isso era uma coisa boa para mim, era fantástico, não entendia naquele momento mas um dia iria compreender. Isso soa como aventura. Não quero fazer outra comparação negativa ao McDonald’s, mas em qualquer balcão do mundo desta empresa a comida vai ser a mesma, e em vez disso eu prefiro experimentar algo diferente.
Entre tantos realizadores conceituados deste período do cinema americano, qual é a razão para escolher estas duas realizadoras menos conhecidas, Barbara Loden e Carolee Schneemann?
Podemos, obviamente, falar sobre os grandes conhecidos como Coppola, Scorsese, Lucas, mas aí já existem vários livros, críticas. Para mim, neste período, interessa a descoberta das pessoas que por quaisquer razões foram excluídas dessas considerações, mesmo que, na minha opinião, tenham filmes muito radicais e inovadores. Interessa-me cada vez que há este tipo de buraco negro dentro da história do cinema. Porque é que um filme como o Wanda, para mim um filme tão fantástico, tão poderoso, foi rejeitado, quais as razões, e começo a pensar e chego a algumas teorias. Quando viajo para falar do cinema americano, falo de coisas esquecidas, e se posso falar sobre Barbara Loden ou Carolee Schneemann isso parece-me mais útil. Há muitos que podem falar de Alfred Hitchcock e as minhas palavras sobre ele não são necessárias.
Pode ser de certo modo um reflexo da minha experiência pessoal. Aos 12 anos fui pela primeira vez ao Festival de Nova Iorque para ver um filme de Erich von Stroheim. Para mim, sobretudo naquela época, ver filmes num festival e vários cinemas de repertório era uma aventura. Muitas vezes vi coisas que não entendi nada, mas isso era uma coisa boa para mim, era fantástico, não entendia naquele momento mas um dia iria compreender. Isso soa como aventura. Não quero fazer outra comparação negativa ao McDonald’s, mas em qualquer balcão do mundo desta empresa a comida vai ser a mesma, e em vez disso eu prefiro experimentar algo diferente.
Entre tantos realizadores conceituados deste período do cinema americano, qual é a razão para escolher estas duas realizadoras menos conhecidas, Barbara Loden e Carolee Schneemann?
Podemos, obviamente, falar sobre os grandes conhecidos como Coppola, Scorsese, Lucas, mas aí já existem vários livros, críticas. Para mim, neste período, interessa a descoberta das pessoas que por quaisquer razões foram excluídas dessas considerações, mesmo que, na minha opinião, tenham filmes muito radicais e inovadores. Interessa-me cada vez que há este tipo de buraco negro dentro da história do cinema. Porque é que um filme como o Wanda, para mim um filme tão fantástico, tão poderoso, foi rejeitado, quais as razões, e começo a pensar e chego a algumas teorias. Quando viajo para falar do cinema americano, falo de coisas esquecidas, e se posso falar sobre Barbara Loden ou Carolee Schneemann isso parece-me mais útil. Há muitos que podem falar de Alfred Hitchcock e as minhas palavras sobre ele não são necessárias.
Em 2024, é com muito gosto que recebemos o programador e investigador norte-americano Richard Peña para um mini curso de cinema, integrando, em Maio, o plano de iniciativas especiais do 25.º aniversário do Teatro Viriato.
✔ Sexta 31 Maio das 18h30 às 21h30.
✔ Sábado 01 Junho das 10h às 13h e 14h30 às 18h30.
✔ Participação 30eur, com desconto para os associados CCV (20eur) e amigos Teatro Viriato.
✔ As pessoas interessadas devem preencher o formulário de inscrição (link aqui)
✔ Seminário acreditado pela APECV
✔ Sexta 31 Maio das 18h30 às 21h30.
✔ Sábado 01 Junho das 10h às 13h e 14h30 às 18h30.
✔ Participação 30eur, com desconto para os associados CCV (20eur) e amigos Teatro Viriato.
✔ As pessoas interessadas devem preencher o formulário de inscrição (link aqui)
✔ Seminário acreditado pela APECV
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