ARGUMENTO
Close to Heaven
Entrevista a Ed Lachman
Close to Heaven
Entrevista a Ed Lachman
por ANABELA MOUTINHO
Janeiro 2025

SET DE PRODUÇÃO DO RECENTE "O CONDE" (
PABLO LARRAÍN, 2023)
As imagens têm de possuir autenticidade — tens de acreditar naquilo que estás a ver. Por isso, para mim, todos os filmes são documentários.
As imagens têm de possuir autenticidade — tens de acreditar naquilo que estás a ver. Por isso, para mim, todos os filmes são documentários.
Ed Lachman. Cerca de oito dezenas de filmes. 50 prémios (muitos deles por Carol e Far from Heaven), vários de carreira como o Lifetime Achievement Award da recente 32.ª edição do Energa Camerimage, o festival polaco dedicado à direcção de fotografia. Uma breve mas significativa retrospectiva de 8 filmes nesse mesmo contexto, uma Masterclass, um Seminário, vários Q&A e um comovente discurso de aceitação da distinção.
Ed Lachman. Uma marca autoral evidente e reconhecível em tantos dos filmes que fotografou, de Todd Haynes, Ulrich Seidl, Sofia Coppola ou de Pablo Larraín, ou de Steven Soderbergh, Wim Wenders, Larry Clark… A preferência pela película em lugar do digital, que sacrifica a profundidade. A opção pelo formato de 16mm dado o amor ao grão da imagem que humaniza certas histórias, em particular em filmes de época. Metodicamente filmar pessoas atrás dos vidros, no nevoeiro, nos reflexos, nos espelhos, no não-dito quando a palavra é íntima, difícil ou interdita. Preferir paletes mais limitadas de cores pelos significados concentrados e identitários que autorizam. Jogar com texturas, várias. Cinema são metáforas visuais, diz. Nelas as personagens vivem e as histórias desvelam-se.
Uma entrevista comigo. Mais perto do paraíso ser-me-ia difícil.
Começarei esta breve conversa com a questão da imediaticidade dos takes nas obras documentais, sobre a qual…
Todos os filmes são documentos. Mesmo que se possa fazer um outro take num filme de ficção, ele continua a documentar uma performance, as luzes nunca são as mesmas, o local para onde a câmara se move... As imagens têm de possuir autenticidade — tens de acreditar naquilo que estás a ver. Por isso, para mim, todos os filmes são documentários.
Então, o cinema não é sobre a verdade, é sobre a autenticidade.
Sim, é isso que defendo. Não é sobre a verdade, porque toda a verdade é subjectiva. O público tem de acreditar naquilo que está a ver. Portanto, como é que nós motivamos essa realidade com, por exemplo, o tipo de luz que utilizamos? Há tantas maneiras de se poder reforçar aquilo que a ideia é, ou aquilo que, em última análise, estás a comunicar. O que é real são as nossas emoções, e a linguagem do cinema, para mim, são imagens, não são palavras. O que torna um filme diferente de uma peça de teatro, um livro, até uma fotografia, uma pintura, é que o filme se move no tempo e no espaço e na duração da imagem. Portanto, como é que tu constróis essas imagens para contar a história?
Suponho que é por isso que concorda com Jean-Luc Godard quando ele proclama que os filmes são “ensaios visuais”.
Foi por esse motivo que ele deixou de escrever argumentos a partir de certa altura. Eu trabalhei com ele nalgumas dessas suas “visualizações”, como ele diz1. Se não expressássemos o cinema através da sua linguagem, que são as imagens, em que é que ele se tornaria?
O que, sendo assim, depende também do acto de selecção de onde se coloca a câmara, seja ela uma opção do director de fotografia ou do realizador?
Sim. Coloca-se a câmara onde o público está. Paralelamente, a outra questão é sempre a do ponto de vista. Através de quem estás tu a contar a história? Onde é que tu desejas que o público participe da imagem, com a imagem? A câmara é como um outro actor, porque o que ela faz com os actores é agir e reagir, tal como eles fazem entre si.
Ed Lachman. Uma marca autoral evidente e reconhecível em tantos dos filmes que fotografou, de Todd Haynes, Ulrich Seidl, Sofia Coppola ou de Pablo Larraín, ou de Steven Soderbergh, Wim Wenders, Larry Clark… A preferência pela película em lugar do digital, que sacrifica a profundidade. A opção pelo formato de 16mm dado o amor ao grão da imagem que humaniza certas histórias, em particular em filmes de época. Metodicamente filmar pessoas atrás dos vidros, no nevoeiro, nos reflexos, nos espelhos, no não-dito quando a palavra é íntima, difícil ou interdita. Preferir paletes mais limitadas de cores pelos significados concentrados e identitários que autorizam. Jogar com texturas, várias. Cinema são metáforas visuais, diz. Nelas as personagens vivem e as histórias desvelam-se.
Uma entrevista comigo. Mais perto do paraíso ser-me-ia difícil.
Começarei esta breve conversa com a questão da imediaticidade dos takes nas obras documentais, sobre a qual…
Todos os filmes são documentos. Mesmo que se possa fazer um outro take num filme de ficção, ele continua a documentar uma performance, as luzes nunca são as mesmas, o local para onde a câmara se move... As imagens têm de possuir autenticidade — tens de acreditar naquilo que estás a ver. Por isso, para mim, todos os filmes são documentários.
Então, o cinema não é sobre a verdade, é sobre a autenticidade.
Sim, é isso que defendo. Não é sobre a verdade, porque toda a verdade é subjectiva. O público tem de acreditar naquilo que está a ver. Portanto, como é que nós motivamos essa realidade com, por exemplo, o tipo de luz que utilizamos? Há tantas maneiras de se poder reforçar aquilo que a ideia é, ou aquilo que, em última análise, estás a comunicar. O que é real são as nossas emoções, e a linguagem do cinema, para mim, são imagens, não são palavras. O que torna um filme diferente de uma peça de teatro, um livro, até uma fotografia, uma pintura, é que o filme se move no tempo e no espaço e na duração da imagem. Portanto, como é que tu constróis essas imagens para contar a história?
Suponho que é por isso que concorda com Jean-Luc Godard quando ele proclama que os filmes são “ensaios visuais”.
Foi por esse motivo que ele deixou de escrever argumentos a partir de certa altura. Eu trabalhei com ele nalgumas dessas suas “visualizações”, como ele diz1. Se não expressássemos o cinema através da sua linguagem, que são as imagens, em que é que ele se tornaria?
O que, sendo assim, depende também do acto de selecção de onde se coloca a câmara, seja ela uma opção do director de fotografia ou do realizador?
Sim. Coloca-se a câmara onde o público está. Paralelamente, a outra questão é sempre a do ponto de vista. Através de quem estás tu a contar a história? Onde é que tu desejas que o público participe da imagem, com a imagem? A câmara é como um outro actor, porque o que ela faz com os actores é agir e reagir, tal como eles fazem entre si.

"Longe do Paraíso" (Todd Haynes, 2002)

"Carol" (Todd Haynes, 2015)
Por isso afirma
que o director de fotografia é, para os actores, o primeiro
espectador.
Exactamente, exactamente. É por essa razão que cada vez mais realizadores desejam ser os operadores da câmara, porque eles compreenderam que os actores, na forma e no olhar que dirigem para a câmara, para o operador de câmara, homem ou mulher, pretendem obter uma reacção.
Aproxima a direcção de fotografia da poesia, porque ela tem a possibilidade de criar um certo tipo de realismo poético, da arquitectura, construída neste caso por luz, espaço e tempo, da pintura, pelo menos quanto ao uso das cores e dos seus respectivos efeitos... Posso assumir que, para si, a direcção de fotografia está em diálogo directo e dialéctico com várias artes?
Sim, pode, porque não? [sorriso] Mas sabe, quando pensamos em Hegel e todas as suas considerações sobre tese, antítese e síntese, basicamente é isso que nós fazemos quando escrevemos a ideia de uma história, a qual é traduzida para uma história, a qual é posteriormente montada e finalmente completada pela audiência. Todos estes elementos jogam entre si e uns contra os outros.
Por outro lado, faz a comparação entre a fotografia, a direcção de fotografia e a música, por todas elas serem formas não-verbais de comunicação. Gostaria, em particular, de o ouvir um pouco sobre o papel que a música tem em alguns dos filmes em que trabalhou.
Bem, é a forma como se usa a música. Hollywood usa a música nos filmes para subestimar o papel das imagens na criação de emoções, uso de que não sou propriamente um fã. Eu gosto da música que surge da própria situação e não uma música que cubra a situação...
… música que não atropele as imagens…
Exacto, música que não seja sobreposta às imagens. A música deve ser utilizada intrinsecamente como uma parte da textura do filme, como sucede com a “source music”2 e igualmente com os sons – a realidade é aumentada com as texturas que sons e músicas podem criar. De novo penso em Hegel… quando a música nem sempre está em sintonia com a imagem, quando a música pode ser contrapontística com a imagem, é uma outra forma de expressar uma ideia. Consegues demonstrar que 1 + 1 é igual a 3, em vez de 1 + 2 ser igual a 3.
Exactamente, exactamente. É por essa razão que cada vez mais realizadores desejam ser os operadores da câmara, porque eles compreenderam que os actores, na forma e no olhar que dirigem para a câmara, para o operador de câmara, homem ou mulher, pretendem obter uma reacção.
Aproxima a direcção de fotografia da poesia, porque ela tem a possibilidade de criar um certo tipo de realismo poético, da arquitectura, construída neste caso por luz, espaço e tempo, da pintura, pelo menos quanto ao uso das cores e dos seus respectivos efeitos... Posso assumir que, para si, a direcção de fotografia está em diálogo directo e dialéctico com várias artes?
Sim, pode, porque não? [sorriso] Mas sabe, quando pensamos em Hegel e todas as suas considerações sobre tese, antítese e síntese, basicamente é isso que nós fazemos quando escrevemos a ideia de uma história, a qual é traduzida para uma história, a qual é posteriormente montada e finalmente completada pela audiência. Todos estes elementos jogam entre si e uns contra os outros.
Por outro lado, faz a comparação entre a fotografia, a direcção de fotografia e a música, por todas elas serem formas não-verbais de comunicação. Gostaria, em particular, de o ouvir um pouco sobre o papel que a música tem em alguns dos filmes em que trabalhou.
Bem, é a forma como se usa a música. Hollywood usa a música nos filmes para subestimar o papel das imagens na criação de emoções, uso de que não sou propriamente um fã. Eu gosto da música que surge da própria situação e não uma música que cubra a situação...
… música que não atropele as imagens…
Exacto, música que não seja sobreposta às imagens. A música deve ser utilizada intrinsecamente como uma parte da textura do filme, como sucede com a “source music”2 e igualmente com os sons – a realidade é aumentada com as texturas que sons e músicas podem criar. De novo penso em Hegel… quando a música nem sempre está em sintonia com a imagem, quando a música pode ser contrapontística com a imagem, é uma outra forma de expressar uma ideia. Consegues demonstrar que 1 + 1 é igual a 3, em vez de 1 + 2 ser igual a 3.


Fotografia de Anabela Moutinho
Se não expressássemos o cinema através da sua linguagem, que são
as imagens, em que é que ele se tornaria?
Se não expressássemos o cinema através da sua linguagem, que são
as imagens, em que é que ele se tornaria?
Uma
questão porventura infantil: há algum dos seus filmes que possa
destacar como o seu preferido?
Acabas por gostar dos filmes de que outras pessoas gostaram mais, no sentido em que isso confirma que realmente foi um bom projeto. Mas tu investes-te a ti mesmo em todos eles. E, por vezes, opções criativas que tomaste por razões ou memórias pessoais e em relação às quais julgas que ninguém irá reparar, são as primeiras sobre as quais os espectadores te darão feedback. Foi o caso do uso da cor verde em Maria3. Já viu? ︎
Acabas por gostar dos filmes de que outras pessoas gostaram mais, no sentido em que isso confirma que realmente foi um bom projeto. Mas tu investes-te a ti mesmo em todos eles. E, por vezes, opções criativas que tomaste por razões ou memórias pessoais e em relação às quais julgas que ninguém irá reparar, são as primeiras sobre as quais os espectadores te darão feedback. Foi o caso do uso da cor verde em Maria3. Já viu? ︎

"MARIA" (PABLO LARRAÍN, 2024)
Anabela Moutinho
Sócia do Cineclube de Faro desde 1986, sua dirigente até 2013. Gosta de dizer coisas sobre cinema, escrevendo-as segundo o antigo acordo ortográfico.
2.A que é ouvida tanto pelos
personagens como pelo espectador.
Sócia do Cineclube de Faro desde 1986, sua dirigente até 2013. Gosta de dizer coisas sobre cinema, escrevendo-as segundo o antigo acordo ortográfico.
1. As curtas-metragens Une bonne à tout faire (1981) e Anatomy of a Shot, a qual consiste em cenários visuais da longa-metragem Passion (1982).
2.A que é ouvida tanto pelos
personagens como pelo espectador.
3. Pablo Larraín, 2024,
filme biográfico sobre os últimos dias da vida de Maria Callas.
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