A produtora Belair fulminou o cinema brasileiro nos anos 1970, amordaçado pela ditadura militar, e ousou filmar sem constrangimentos. Foi censurada, e o documentário de Noa Bressane e Bruno Safadi resgata vários filmes da produtora, incorporando na sua linguagem a época de então. É com entusiasmo que apresentamos a entrevista a Bruno Safadi, conduzida por Ana Dillon, a quem o CCV expressa o seu agradecimento.

1. Queria te pedir para comentar a concepção do primeiro plano do filme. O que motivou a escolha (e a realização) deste plano para a abertura de BELAIR?
O primeiro plano de BELAIR se confunde com o primeiro plano da história do cinema brasileiro. O cinema brasileiro nasce na entrada da baía de Guanabara, num plano feito em um barco, por dois italianos que chegavam ao Rio de Janeiro. Com esse plano inaugural, o cinema no Brasil nasceu experimental, trêmulo, instável. Esse plano se perdeu, como boa parte da memória do cinema brasileiro. Portanto, criamos um plano que dialogasse com o cinema no Brasil e o Cinema Experimental Brasileiro, que tem como um de seus principais capítulos a Belair, outro capítulo pouco conhecido, que estava a prestes a se perder.

2. Na banda sonora de BELAIR, ouvimos Bressane dizer que «o que o leva a fazer alguma coisa é um desespero, de morte, mas também de vida». Ao longo do filme, os dois cineastas fundadores da Belair (Julio Bressane e Rogerio Sganzerla), afirmam princípios, forças e crenças que motivaram a criação e a realização de suas obras. A força deste impulso é inquestionável. Me interessa perguntar a você qual é a força que impulsiona o seu cinema. O que te leva a fazer um filme?
O que me leva a fazer um filme é bem parecido ao que leva os dois cineastas a filmarem. A vontade de me aproximar de algo desconhecido, de algo que ainda não tenho, que ainda não fiz. O que me move é o desafio, o que me é quase impossível, o que me dá um certo medo. O medo me põe pra frente, me impulsiona, me faz querer jogar no abismo, na esperança de haver salvação no fundo do buraco. Até hoje todas as realizações me salvaram, me tornaram possível nesse mundo de hoje.

3. BELAIR é um filme que se aventura a criar composições sonoras e visuais a partir da matéria gerada pelo trabalho de dois cineastas brasileiros. Agenciando estas imagens e sons, o filme constrói uma teia de relações que atravessa o tempo, colocando em diálogo testemunhos e imagens registrados em momentos diversos. São imagens e sons que evocam um imaginário de um período muito marcado na história do Brasil por seu contexto histórico, político e cultural. Sganzerla afirma, em um destes testemunhos, acreditar que o cinema deveria ser "a melodia do pensamento", o que nos leva a perceber as formas visuais e sonoras ali reproduzidas como a resultante de um grande caldeirão de influências e forças atuantes no contexto cultural brasileiro da época da ditadura, organizada, claro, pelas subjetividades singulares dos cineastas e de seus parceiros de criação. Pergunto de que maneira a "melodia" criada por Bressane e Sganzerla ressoa para você hoje, no contexto do cinema brasileiro, ou pelo menos, do cinema brasileiro contemporâneo que mais te interessa? Quais dissonâncias e quais sintonias você identifica?
Bressane e Sganzerla são dos dois grandes faróis para minha geração. Suas obras ressoam em qualquer cineasta, principalmente jovem, que quer se aventurar em um cinema de invenção. É muito estimulante ver seus filmes, principalmente os da Belair. São filmes extremamente inventivos e contagiantes. Filmes feitos com quase nada e com uma invenção absurda sobre o nada do qual são feitos. São filmes políticos, que surgiram em uma época de ditadura militar e cultural. A Belair foi feita no mesmo ano em que era fundada a Embrafilme, empresa que iria, a partir daquele ano, produzir, distribuir e regular o cinema no Brasil por 20 anos. E o projeto dessa empresa era de filmes grandes, que buscassem um público e alavancassem uma indústria de cinema. O resultado foi de filmes duvidosos, frágeis, que não alcançaram nem público, nem arte. Esse modelo não está tão distante do modelo de cinema no Brasil hoje. Vivemos em um momento que a maior parte dos investimentos são destinados às comédias, que trazem algum público, mas quase irrelevante se levarmos em conta o tamanho populacional do país. Já o tamanho dos gastos é bem relevante. Do outro lado da moeda, há uma produção crescente de filmes autorais, feitos com pouquíssima verba, mas que têm conseguido resultados expressivos em festivais internacionais e nacionais. E que têm tido presença constante no circuito comercial e nos canais de televisão a cabo. Frequentemente o tamanho do público do filme autoral juntamente com o gasto em que foi feito é melhor do que o filme pretensamente comercial que teve pouco público e muito gasto.

4. Conte como foi o processo de pesquisa e o acesso aos arquivos que foram utilizados para a construção do filme.

Esse filme criou uma pesquisa sobre a Belair. Quando começamos o projeto, percebemos que não havia praticamente nada sobre o tema. O veto à Belair foi total. Os filmes não foram exibidos, não saíram nos jornais, não tiveram críticas. O que houve foi um silêncio completo sobre as produções. A partir dessa constatação, realizamos mais de 30 entrevistas, ao longo de 2 meses, com pessoas da época, ligadas diretamente e indiretamente às produções e à cultura brasileira da época, para criarmos um material que pudesse nos auxiliar na realização. Essas entrevistas foram importantíssimas. Entrevistamos Bressane, Helena Ignez, Maria Gladys, Caetano Veloso, José Celso Martinez Correia, Carlos Reichenbach, José Mojica Marins, Andrea Tonacci e muitos outros. Não usamos nada além das vozes de Bressane e Sganzerla no filme, mas o material levantado foi fundamental para chegarmos onde chegamos. Depois desse material, realizamos algumas filmagens de imagens que dialogariam com os signos da Belair. E assim fomos para a edição. Passamos 4 meses apenas olhando as imagens, identificando o que era o quê. Depois desse longo período inicial, editamos o filme em mais 4 meses.


Bruno Safadi

5. Gostaria de te pedir para falar sobre a experiência mais recente de realização de um filme no contexto da "operação Sônia Silk", proposta de realização balizada por premissas inspiradas no trabalho de Sganzerla e Bressane no período da Belair. Como foi a concepção deste projeto? Como foi realizar um filme com pouquíssimo dinheiro, em pouco tempo, e como isso influenciou o seu processo criativo?
A Operação Sonia Silk foi o que de mais radical realizei em minha vida e acho que o sentimento é o mesmo para as outras pessoas que estiveram envolvidas no projeto. Realizamos uma mini-Belair. Fizemos 3 longas-metragens em 2 semanas, com um mesmo grupo de atores e técnicos fazendo todos os filmes, com um orçamento só, de 40 mil euros para todas as produções. Por mais que tivesse feito um filme sobre a Belair, que tivesse estudado a produção de Sganzerla e Bressane, fazer uma produção própria é completamente diferente. E a Operação Sonia Silk foi completamente inovador para nós que estávamos ali. Nunca tínhamos feito nada parecido e nem havia fórmula a ser seguida. Tínhamos que inventar essa maneira de fazer e assim tudo foi feito. Criamos roteiros que fossem possíveis de serem filmados em 1 semana, 6 dias. Conversamos bastante antes das realizações. Alguns meses antes, filmamos uma cena de cada filme para tentarmos conseguir a verba da filmagem, que veio de um canal de TV a cabo, o Canal Brasil. Eles nos deram 40 mil euros. Conseguimos formar uma equipe muito interessada em se desafiar, em desafiar os limites, e que estava unida por esse ideal comum. Fizemos uma pré-produção em 3 semanas e filmamos em 2 os 3 filmes. E o que houve de muito legal na realização é que misturamos prateleiras. O filmes foram protagonizados por duas atrizes muito famosas, a Mariana Ximenes e a Leandra Leal, que estão acostumadas a fazerem novelas, grandes produções. Junto a elas estava uma equipe técnica oriunda de filmes extremamente baratos e autorais, vinda principalmente de Fortaleza e Belo Horizonte. Algumas pessoas não eram do cinema, vinham das artes plásticas. Essa mistura deu vigor às produções. Depois, já na montagem, conseguimos fundos na Secretaria de cultura do estado do Rio de Janeiro e do fundo Hubert Bals do Festival de Rotterdam, onde 2 dos 3 filmes estrearam em Janeiro de 2013, “O Uivo da Gaita”, de direção minha, e “O Rio nos Pertence”, do Ricardo Pretti.

6. Há um cena de "Sem essa, Aranha" (de Sganzerla) retomada por BELAIR, em que vemos um pedaço de mapa-mundi que mostra o extremo sul do continente latino-americano. Ouvimos a pergunta: "aonde está o Brasil?", e em seguida a resposta de que "o Brasil está fora, fora da página". Esta cena me leva imediatamente a pensar em uma mudança muito recente que estamos vivendo, com relação ao imaginário mundial sobre o Brasil. Nosso país não me parece mais estar "fora da página", mas, ao contrário, de maneira muito rápida, passou a figurar nas capas das revistas e jornais internacionais, sendo objeto de atração, valorizado simbolicamente e economicamente. Ao seu ver, isso se imprime sobre a produção cinematográfica nacional contemporânea?
Sinceramente acho que em termos de visibilidade no exterior o momento do cinema brasileiro não é dos melhores. Há tempos fazemos figurações pequenas e tímidas nos grandes festivais internacionais. Nossos filmes pouco alcançam os mercados globais. Não há uma política bem desenvolvida para o filme brasileiro no exterior. O que temos são cineastas sozinhos lutando para conseguir passar sues filmes nos festivais internacionais, para fazerem algum acordo com agentes de venda e distribuidores. Os órgãos que aqui existem são falhos em seus papéis. O Cinema do Brasil não nos representa. A Ancine parece querer começar a agir pelos cineastas. Mas ainda há muito o que andar. Hoje o cinema brasileiro é o quarto colocado na America Latina, atrás de Argentina, México e Chile - o que é lamentável para um país do tamanho territorial, populacional e econômico do Brasil.

Entrevista Maio 2013, Ana Dillon.


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