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SUSANA
Susana, Demonio y Carne, de Luis Buñuel, México, 1950, 82'
APONTAMENTOS PARA UM FILME DE BUÑUEL – ARANHAS
Texto de Hélio Teixeira por ocasião do filme que escolheu para o ciclo DIRECTÓRIO – as escolhas dos directores de várias fases da vida do CCV.
"Quando o vento lhe destapa as coxas
é inocente uma donzela?"
"A mim fazia-me jeito", in J. F. Aranda, Os Poemas de Luis Buñuel.
Desejaria agradecer o amável convite do CCV para participar em este venerável aniversário, nas pessoas de Rodrigo Francisco e de César Gomes, meus amigos e parceiros cinéfilos, lamentando de coração a impossibilidade da minha física presença. Dedico esta sessão à memória de um excelso amigo e cineclubista, que me ensinou a ver, a ouvir e a ser: Jorge Humberto.
Sem querer aborrecer, necessito, para devida contextualização, fazer duas citações. A primeira pertence ao próprio Buñuel, na sua biografia, Mi Último Suspiro. Diz ele, a propósito do filme Dishonored, de Sternberg, que tinha a particularidade de acabar com a morte da estrela, nada menos que Marlene Dietrich, em conversa com o produtor do filme e para seu exdrúxulo assombro, que aquele filme nada tinha de original e que nos cinco minutos iniciais, já ele, Buñuel, adivinhara o final. Nessa altura, Buñuel havia desenvolvido um infalível método: "... en aquella época, el cine americano se regía por una codificación tan precisa y mecánica que, con sistema de tiritas, alienando un ambiente, una época y unos personajes determinados, se podía averiguar infaliblemente el argumento de la película". Pois, o homem não acreditou e o realizador levou-o a casa, onde vivia com o seu amigo Ugarte, também ele perfeito conhecedor do método. Deu-lhe, Buñuel, os tópicos generalíssimos do filme. Ugarte não o deixa sequer terminar essas informações úteis: "Corta. Al final la fusilan".
A segunda pertence ao prefácio de Mário Cesariny, incluso na edição portuguesa de Os Poemas de Luis Buñuel: "Buñuel não procura a linearidade mas sim o choque, dos conceitos, das vivências, dos objectos (...). O autor... não pratica a imagem como ela foi sistema de surrealismo: cria sucessos que se degradam por agressão".
Pois bem, será importante ter aquelas citações em conta para devidamente se poder apreciar o extremamente dinamitoso filme que se vai ver, Susana, 1950. Sorrindo, devo esclarecer que este foi dos pouquíssimos filmes de Buñuel que foram exibidos em Portugal no tempo do Estado Novo (25/03/55, Cinema Condes). A maioria dos críticos despreciou esta aparente convencional obra. E Buñuel joga com as aparências tão bem quanto um mestre zen. No final tudo de facto é totalmente diverso: a aparência é demascarada, revelando-se a brutal natureza humana, resultado bem distante de um convencional melodrama, do qual o calandês tinha as chaves. E, esta é a razão que me levou a escolher esta obra prima disfarçada em ingénua narrativa pequeno burguesa, onde os maus são castigados e onde, enfim, a ordem se volta a instalar, depois da eliminação do elemento contagioso. Susana esconde o genial segredo de Buñuel. É um filme chave.
Como funciona isto? Primeiro, pela plena compreensão dos códigos que regem o melodrama, depois pela constante ironia, que Claude Guateur designou por antifrase, que consiste no duplo jogo de dizer uma coisa, que, precisamente, significa o seu contrário (cf. Cesariny). O exemplo clássico disto está no próprio nome da protagonista que, explica-lhe Alberto, simboliza a castidade, pouco antes de ela o seduzir! Ora, este processo é operativo ao longo de todo o filme, mas também o é estruturalmente, o que explica o seu brutal anódino (permitam-me o paradoxo) final.

Buñuel explora aqui um dos principais motivos da sua obra, que serve como motor de efeitos: a Líbido enquanto força motriz que revela o indivíduo, ao mesmo tempo que a hipocrisia social que a pretende esconder. Esta a dinâmica dialéctica do jogo buñueliano, que, em associação com específicos referentes culturais como a máscara da ideologia católica versus os escritores malditos do desejo, especificamente Sade ou Galdós, justicam o seu mais verdadeiro mundo. Antifrase.
O desejo é a realidade. O milagre funciona ao contrário. É por intervenção divina que Susana é libertada da prisão, já que o deus de Buñuel pretende colocar a nu. A quinta onde se alberga representa o paraíso terreal, de acordo com as convenções burguesas. Ali tudo é ordem à superficíe, pois temos uma família, organizada patriarcalmente, que o anjo caído logo trata de subverter. Note-se aquele sinal dado à sua chegada, quando o patriarca nada convencido em a deixar ficar, beija avidamente a sua estupefacta senhora, por certo nada habituada a tais ardores, quando esta acabara de comentar a sensualidade de Susana, justicando ele "é do calor!".
Aponto também a sarcástica sequência, na qual o senhor comenta o decote pouco próprio da heroína, ao mesmo tempo que limpa o interior da sua espingarda de forma ostensivamente masturbatória: máquina orgasmática.
Assim, o jogo sensual a todos contagia. Os homens transformam-se em monstruosos títeres de um desejo que não sabem controlar, almejando apenas a destruição dos seus competidores pelo sexo aberto de Susana. Isto torna-se tão evidente, tão claro, que à altura, poucos o viram assim transparente como poço de límpida água. E não, não se trata de um famoso exemplo de amour fou. Estas personagens estão no seu antípoda. Trata-se da crueza do real. Das convenções aniquiladas pelo real. Agora apercebemo-nos claramente que aquela negra força matriz destrói as anteriores hipócritas relações sociais. De modo tão tão radical, que pouco antes do epílogo, o desejo primário dos habitantes deste paraíso consiste em matarem-se, pela posse do anjo, uns aos outros. E não, a senhora não é deixada de fora, pois também participa, a seu modo, talvez o mais perverso, do prazer da carne de Susana, esse ser tão amado ao revés: o espelho de Sade.
Salientarei ainda o rigoroso mimetismo formal que o realizador utilizou para o seu feroz ataque ao convencionalismo típico do melodrama, que, como se saberá, está carregado de uma carga sémica unívoca, representando o espiríto acrítico, base, afinal da sociedade do espectáculo: pipocas. Deste modo, Buñuel inverte aquela estrutura através da força básica do desejo, mas como que dela mesmo se aproveita. Assim, foi devidamente notado a inversão formal que este filme implementa: já não planos sequência, rigorosamente montados, mas, a igual que o código formal do melodrama de Hollywood a montagem de planos mais curtos tem aqui um relevante papel. De facto, o ritmo em Susana torna-se mesmo frenético. E note-se a central importância do pátio central da casa. É este espaço que as personagens sucessivamente e vertiginosamente atravessam num delirante vai e vem em busca dos prazeres da carne. Como bem notou Aranda "el decorado de la casa y el patio de la finca... aparece aplastado por una luz devoradora", salientando a sua evidente funcionalidade "con su sistema de puertas que dan al patio de la casa, sabiamente dispostas para facilitar el tránsito incesante de los personajes". Por este processo a câmara torna-se mesmo histérica, dentro de um rigor e precisão milimétrica. O realizador abandonou a sua sóbria montagem à escola soviética para adoptar a decadente técnica hollywoodesca.
Susana é o centro de uma cadeia que desvelará os comportamentos tipificados e revelará os verdadeiros desta família proprietária. Isto a partir da força do desejo, que genialmente e dentro das recorrências autorais do realizador, será bastante mais estruturante que, imagine-se, a luta de classes. Por isto, poder-se-á interpretar o filme enquanto uma paródia do melodrama? Penso que não, visto não haver distanciamento em relação ao universo parodiado. Muito pelo contrário. O filme pretende inscrever-se na real realidade, passe a redundância, mostrando como uma determinada e desejada ordem hierática se vê completamente circuitada pela entrada de um elemento do mundo real: paraíso contaminado por Eva.
Finalmente, desejaria apontar a influência de Dreyer (como Buñuel o amava, sobretudo a paixão), presente ao longo do filme, mas sobretudo no assombroso plano inicial quando o raio projecta pelas grades uma cruz no chão, plano quase idêntico a um de Dreyer no início da sua paixão, ainda que aí a cruz seja desenhada pela sombra da janela do quarto onde se encontra Joana. Não deixarei de lembrar, como irmão deste Susana, o Teorema (1967) de Pasolini.
Cabe, a concluir, uma interrogação que deixo, directamente interpelando o espectador: como interpreta o final? Espero, também, que se divirtam a encontrar os numerosos inuendos sexuais disseminados ao longo do filme, começando pela aranha do início.
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programa
24 de Fevereiro
VERMELHO de Krzisztof Kieslowski (1994)
filme escolhido e apresentado por Joaquim Alexandre Rodrigues
07 de Abril
A ESTRADA de Federico Fellini (1954)
filme escolhido e apresentado por António Ribeiro de Carvalho
Sócios €1,5 / €2,5 • Não Sócios €4
TERÇAS 21H30 Projecções no Instituto Português do Desporto e da Juventude
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